Livra-me do mal

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Encostando minha cabeça na janela, eu tentava enxergar algo através do vidro embaçado. Vincenzo estava do outro lado da sala descrevendo as sinopses dos filmes que ele mesmo sugeria na Netflix. Cada vez que concluía um resumo, olhava pra mim, esperando minha opinião.

Eu fingia não escutar, entendia tudo que ele dizia, mas de propósito o ignorava. Sabia que ele logo iria perceber que era para provocá-lo. Antes eu teria medo, mas agora, depois de tudo, não tenho mais.

— Liz? — ele me chamou, e mais uma vez fingi que não o ouvi.

Vincenzo se aproximou de mim, tocou em minhas mãos, depois alisou meus pulsos chegando nas algemas.

— Eu não queria que fosse assim, já te disse isso. — ele tentava me amolecer, mas não ia funcionar de novo.—  Liz, está me ouvindo? —  segurando meu rosto, Vicenzo me obrigou a olhar pra ele, mas eu desviava meus olhos.

— Achei que você tinha entendido. — ele falava novamente — Já não me enfrentava como nos primeiros dias, não me xingou mais, não gritou... pensei que finalmente tinha prestado atenção aos meus sentimentos.

Eu estava calada tentando fazer a expressão mais apática que fiz na vida. Erguendo minhas duas mãos presas, ele encostou meus dedos em seus lábios. Mais uma vez, fiquei indiferente.

De súbito ele se levantou do sofá e começou a andar agitado pela sala, com os punhos cerrados. Logo a mesa de centro voou longe com um chute seu. Depois vejo o pequeno vaso de gesso bege, que estava sobre o hack, ser destruído em mil pedaços ao Vicenzo lançá-lo contra a parede.

Depois de dar bicudas nas paredes e chegar até mesmo a machucar a própria mão, esmurrando a porta do armário de cozinha, Vicenzo me encarou com seu olhar ao mesmo tempo colérico e deprimido.

Ele chegava perto, feito um predador. Se queria minha atenção, conseguiu, pois agora eu não tirava os olhos dele. Não sabia o que  viria, mas já esperava o pior, tenho esperado desde que perdi as esperanças de escapar. O que seria? Quebrar minha cara, cortar meus dedos, me violar? Ou me matar... Ao notar que essa última possibilidade não me parecia tão ruim, percebi o quanto mudei desde que fui trazida pra cá.

E, refletindo sobre isso, surgiu em mim uma coragem desconhecida, que veio não sei de onde. Então passei a encarar Vicente com ousadia.

Quando ele estava a menos de um metro de mim, me encarando com ressentimento, eu já me preparava para o ataque.

"Amo você pai, te amarei sempre. Mamãe, espero te encontrar aí desse lado..."

E então aconteceu, antes que eu entendesse o que Vicenzo fez, minhas mãos e pernas estavam soltas e eu ouvi o som das algemas sendo jogadas no chão.

Fiquei meio embasbacada vendo minhas mãos livres finalmente. Não sabia o que sentir. Foi quando Vicenzo se ajoelhou na minha frente, pegou minhas mãos e me fez segurar o revólver calibre 38.

Ele mesmo colocou meu dedo no gatilho e então, colocando sua testa no cano da arma, me disse:

— Atira.

Eu apenas meneava a cabeça e chorava sem entender nada daquilo. Vincezo, me impendido de soltar o revólver com suas mãos, disse:

— Só tem um jeito de sair daqui, Liz.

— Não... assim não, por favor — eu implorava.

— Você quer sair daqui ou não, Liz?

Eu apenas soluçava.

— Me mata! — ele dizia, pude ver seus olhos se enchendo de lágrimas. — Vamos logo, Liz. Aperta esse gatilho.

Fechando os olhos, eu não tinha reação. Foi quando o ouvi falar com voz embargada:

—  Você acabou com meu coração... e não me ajuda a fazer a única coisa que pode pra me livrar disso.

Agora ambos choramos. Vincenzo tomou a arma de minhas mãos e se levantou finalmente, depois foi até a porta e a abriu.

— A chave do carro tá na ignição. — ele disse, olhando para o chão.

Limpando as lágrimas do rosto, eu olhei para Vicenzo sem acreditar no que ele estava fazendo.

Diante da minha demora, ele olhou para mim, dizendo:

— Liz!

Eu me levantei de uma vez, com alguma dificuldade, por ter ficado tanto tempo com os pés presos. Logo passei por ele e saí pela porta. Por um instante vi a mata diante de mim e o ar frio bateu em meu rosto — sempre odiei o frio, mas dessa vez o amei como nunca. Contudo, logo me virei para Vicenzo que continuava na porta, olhando pra baixo. Eu recuei da casa andando de costas, temendo que ele mudasse de ideia. Mas logo corri e entrei rapidamente no carro.

Em seguida, ouvi o barulho monstruoso do motor, o carro começou a andar e então aquela casa no meio do mato e aquelas duas semanas malditas ficaram para trás.

Eu nem sei se estava rindo ou chorando, a percepção de estar livre era tão surreal quanto o a noção de que havia sido raptada.

Nesses devaneios eu ouvi um tiro... Ou acho que ouvi, não olhei para trás, apenas segui aquela estrada de terra no fim daquela tarde cinza.

Na Escuridão do AbismoOnde histórias criam vida. Descubra agora