Uma sombra do passado

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Quando fazia uma retrospectiva de sua vida durante aqueles últimos anos, parecia um pouco injusto que não tivesse morrido ao lado de seu irmão quando foram feitos prisioneiros no Covil do Água Negra.

Às vezes, quando dormia, tinha a sensação de estar afundando mil pés abaixo d'água, sendo esmagado sob o peso do mar. Quanto mais fundo e escuro, mais denso e frio, até não haver mais nada além de uma voz rouca e dos olhos de um amarelo inexpressivo à sua volta.

"E do que adianta sua desculpa?"

Então, Shi Qing Xuan acordava assustado, os pulmões encharcados, o corpo dolorido como se ainda estivesse acorrentado e cercado por doentes, mas não estava mais lá. Seu irmão mais velho estava morto, seu melhor amigo também, ou seria mais correto dizer que ele nunca existiu?

Mesmo uma morte simbólica dói como a real. A sensação era a mesma porque Ming Yi se foi e Qing Xuan não poderia perdoá-lo por isso, mesmo que ele fosse seu melhor amigo. Para o que ele fez não havia a possibilidade de perdão, mas também não havia para Shi Qing Xuan e seu irmão. Isso quer dizer que estavam quites agora? Então por que parecia que apenas ele ainda estava pagando pelo crime?

Quando parava para pensar nisso por vezes, procurava justificativas do porquê o Demônio Xuan não o executou no final, já que, assim como Shi Wu Du, ele também era responsável por toda a ruína que caiu sobre sua vida; mas não havia resposta.

A pergunta permanecia queimando seu peito todos os dias: o Água Negra não quis, ou ele simplesmente não pôde? E do que adiantaria uma resposta? Não poderia levar seus mortos de volta para casa.

No início, seus sentimentos ficaram tão despedaçados, seu coração estava tão partido, que não teve reação alguma. Só sabia chorar, alucinar, chegou a tentar se matar, mas não teve forças para acabar com a própria vida. Não parecia o tipo de coisa que seu irmão aprovaria onde quer que ele estivesse.

Depois, ele começou a recobrar o juízo e entrou em um estado de negação raivosa. Foi a época que mais se prejudicou. Rejeitou toda a ajuda de conhecidos, principalmente de Pei Ming, e vagou pelas ruas à esmo na esperança que alguém o matasse.

O general Ming Guang o encontrou apenas uma vez, poucos dias depois do aniversário do Príncipe da Coroa Xie Lian, enquanto QingXuan vagava pelas ruas mendigando. Ming Guang tentou persuadi-lo a aceitar ajuda financeira, ou um lugar seguro na corte mediana, mas Qing Xuan negou e fugiu dele na primeira oportunidade.

Às vezes Xie Lian o ajudava, fazia convites para que ele viesse comer no seu templo e lhe dava roupas novas. Cuidava dos seus ferimentos e escovava seus cabelos, fazendo-o parecer ao menos um pouco menos miserável; mas toda vez que Shi Qing Xuan se olhava no espelho de cobre e percebia sua aparência anterior voltando, o desespero era tão grande, que não podia suportar.

A única coisa que tinha em sua posse agora era seu leque recém restaurado com o símbolo do Mestre do Vento; mas do que adiantava? Ele não tinha poderes, nenhuma energia espiritual, então não era muito diferente de ter um leque comum.

Já havia pensado várias vezes em queimá-lo, quebrá-lo, jogá-lo no mar..., mas aquele leque tinha um peso significativo muito grande. Era a sua arma espiritual, a que sua versão passada mais gostava, não poderia jogar fora como se não valesse nada.

Ele não conseguia fazer isso.

(...)

Encostou-se à estátua do Mestre da Água e fechou os olhos com o leque em seu colo, já sabendo o tipo de sonhos que teria se conseguisse dormir. Estava tão cansado e dolorido pela andança do dia, que isso não o atemorizava tanto quanto no passado.

O Mar Anseia Pelo Vento (BeefLeaf)Onde histórias criam vida. Descubra agora