Capítulo 1 - uivando para si

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Mais um dia. Só mais um dia. Os prazos estão cada vez mais apertados, mas assim que entregar a versão final de seu último livro Luna pretende tirar férias. Ir para o lugar mais distante, isolado e desconectado na Internet que seja possível dentro de seu limitado orçamento.
A moça para em frente à tela do computador com a mente completamente vazia. Nem um sopro de inspiração. Nem um link para pesquisa de repertório que possa ajudá-la a empregar a técnica. Não apenas sua mente está vazia, mas ela por inteiro.
Faz pelo menos 7 dias que não come ou dorme direito. Seus pesadelos estão cada vez mais recorrentes e algo não vai bem com sua saúde pois, com exceção de água e biscoitos açucarados,  nada mais para em seu estômago.
Talvez seja o estresse. Talvez seja alguma doença terminal. De todo modo, ela não havia planejado viver muito. Agora aos 27 anos, sequer se esforçava para não adentrar ao clube dos 27. Achava um momento interessante para se deixar ir.
Sim, definitivamente ela estava deprimida. Terapia seria ótimo mas seu orçamento não a permitia. Não tinha amigos, não tinha família, não tinha dinheiro e no momento não tinha sequer expectativas de futuro. A situação era complexa e dolorosa, só não mais que a dor de cabeça causada pelo zumbido constante em seu ouvido.
Já passava das 2h da manhã e ela ainda estava ali remoendo seus gatilhos, irritada por seu corpo fragilizado pelas pancadas da vida e por sua mente aos cacos.
Cada vez que passava pela cozinha percebia as facas na bancada com mais interesse. E se...?
Não! A simples ideia de desistir não fazia parte de seu vocabulário.
Não seria justo consigo mesma desistir depois de tudo o que passou para sobreviver. Foram 9 anos vagando pelas ruas disputando comida nas latas de lixo com os cães, cochilando de olhos abertos ante os perigos da maldade humana, até ser recolhida para o orfanato onde sua vida não era menos dolorosa e onde a sensação de estar só no mundo não era amenizada pelo fato de estar constantemente rodeada de dezenas de pessoas.
Ainda assim, foi ali, em meio aos castigos físicos e à constante sensação de não pertencimento que Luna aprendeu a ler e a escrever e passou a criar histórias fantásticas que a retirassem de sua realidade.
3h da manhã. A hora onde o véu entre o terreno e o extraterreno se faz mais frágil. O relógio de parede dá um leve estalo e para, fazendo com que a moça reaja e seus pensamentos ganhem letras, sílabas,  palavras e frases. Ela se levanta e vai até a janela onde a luz da lua invade as frestas da cortina. Observa o céu quase sem estrelas e lamenta viver numa cidade grande onde a luminosidade (e a poluição) impede o contato com as maravilhas da natureza.
Amaldiçoa mentalmente a separação da humanidade com a natureza e se sente nostálgica ao se lembrar de uma época em que ambos eram um só. Uma lembrança? Trocar o dia pela noite não estava fazendo bem a ela. Talvez o ideal fosse tomar um chá calmante e ir dormir. Ou talvez sair pela noite uivando para a lua como os lobos fazem. Uivar para a lua... ela ensaia deixar o pensamento insano tomar conta de si mas se lembra que mora em um apartamento, cercada de vários outros apartamentos e a multa por gritar de madrugada com certeza está fora de cogitação.
Volta-se para a tela do computador que a essa altura apresenta um descanso de tela com o relógio marcando 3h30. Talvez seja melhor encerrar por hoje. Ela uiva para si  baixinho. Ao amanhecer ela precisa mudar as coisas.

A Deusa da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora