O primeiro amor de uma mulher é sempre o seu pai ou uma figura paterna, pelo menos para aquelas que tiveram o pai presente ou uma figura paterna (sinto muito por vocês mulheres que não tiveram), eu tive o meu primeiro amor, a minha figura paterna, pelo menos durante os primeiros 9 anos da minha vida, e o que vou falar agora é sobre como o perdi.
Hoje, 15 anos depois, eu consigo falar do meu pai novamente com carinho, amor e respeito, foi necessário ir ao psicologo para compreender o porquê dele ter ido embora e assim arrancar toda a raiva e frustração que ficou durante esses longos anos. No dia que meu pai resolveu ir embora eu já sabia que algo ia acontecer, o olhar dele era estranho, era um olhar que dizia "espero que um dia você me perdoe, não consigo mais ficar" (ou pelo menos era o que minha cabeça de 9 anos entendeu), era 4 de março de 2009, dois dias depois do aniversário dele, meu pai tinha voltado para casa depois de um mês internado em uma clínica psiquiátrica após um surto na frente da nossa família, ele voltou e eu sentia que aquele ali não era mais o meu pai, o homem carinhoso e que colocava seus filhos como prioridade, o homem que acordava cedo e levava seus filhos para a praia com uma sacola cheia de merendas, e talvez esse meu achar (repito, esses eram meus pensamentos com 9 anos) tenha sido pelo fato de ter visto o lado mais feio dele, quando eu só estava acostumada a ver o lado bonito.
Eu era uma criança e é claro que nós só queremos ver o lado bonito dos nossos pais, o lado amoroso, carinhoso e quando nos deparamos com o pior, a gente começa a questionar a índole e o caráter, perguntas são criadas e na minha pequena cabeça fértil eu só sabia me perguntar "meu pai age dessa forma sempre quando não estamos olhando?" "Por que a mamãe continua com ele mesmo depois dele ter feito isso?", "por que meu irmão mais velho ainda o ama e admira mesmo ele o tratando mal?", foram perguntas que ficou anos me perseguindo, e foi assim que perdi meu amor pela primeira vez.
Perdi quando meu pai foi embora e eu tive que ver minha irmã caçula de apenas 6 anos dormir todos os dias chorando perguntando "cadê meu papai?" "Ele não me ama mais, por isso ele foi embora?", perdi quando minha mãe pediu para eu não chorar na frente da minha irmã para não fragilizá-la mais, então eu me privei de chorar por ele, pela perda dele durante 15 anos, perdi quando minha mãe ficou com fome para dar o que comer a mim e aos meus irmãos e meu pai não estava lá para suprir, perdi quando vi meu irmão mais velho culpando a minha mãe por meu pai ter ido embora, ou talvez eu tenha perdido quando vi meu pai em um surto querendo matar meus irmãos e a minha mãe, enquanto eu, minha irmã caçula e meu irmão do meio se escondia de baixo da cama rezando para meu pai ficar melhor e todos saírem sã e salvos, ou talvez eu tenha perdido quando vi meu pai saindo amarrado em uma maca gritando, indo em direção ao carro da Samu enquanto me olhava nos olhos e chorava, acho que foi nesse momento que eu o perdi, ele viu medo nos meus olhos e eu enxerguei culpa nos seus.
Mas meu pai nunca foi culpado, eu o culpei por 15 anos, mas eu nunca soube que meu pai já tinha esses surtos antes mesmo de eu nascer, eu não sabia que meu pai se tornou uma pessoa melhor depois que teve filhos, eu não sabia, caramba, eu não sabia que meu pai tinha esquizofrenia, ninguém nunca se importou em contar, até eu procurar saber. Depois de 15 anos que meu pai sumiu pelo mundo, e deixando apenas a incerteza de saber se ele está ou não vivo, eu só queria dizer a ele que eu sou grata, grata por ser filha dele, por ter um homem tão bom como pai, queria dizer que ele nos amava tanto que quando viu medo nos nossos olhos se sentiu tão mal que resolveu ir embora, pois achou que tinha falhado conosco. Pai se um dia você voltar, ou um dia ler isso, eu queria dizer que eu te amo, você fez e ainda faz falta, acho que você ia adorar saber que agora você é avô, sua caçula teve um menino lindo, seu mais velho teve três bebês incríveis, a sua primeira filha mulher está aqui digitando isso faltando exatamente 16 dias para a DPP da sua primeira filha, e os outros dois estão conquistando a vida cada um do jeitinho deles. Acho que você ia adorar muitas coisas, pai! Que entrei na faculdade e conquistei um emprego bom e advinha? Escolhi a área de exatas, eu odiava matemática e odiava a forma que você me ensinava, acabei escolhendo uma área que me lembrasse os seus ensinamentos, tudo para viver um pouco de você mesmo sem você. É isso.
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Ressignificando o amor e a dor
ChickLité mais uma forma de desabafo para externalizar tudo que passei nesses últimos anos, é a minha forma de curar as feridas que deixaram e os traumas que insistem em não ser curados. É para quando minha filha crescer e entender que nada foi culpa dela...