A ideia de ter a sua alma gêmea predestinada em algum lugar próximo parecia boa demais. Perfeita demais. A humanidade não mais se preocupava em construir bases sólidas para relacionamentos duradouros, pois se as divindades entrelaçavam seus destinos, não importavam mais as colunas, vigas ou alicerces uma vez que a obra final surgiria, mesmo sem esforços. O gemelar era o novo desdobramento inevitável da caminhada humana, era a sina da humanidade. Algo tão natural quanto sentir fome ou sono.
Kenny, no entanto, achava o Gemelar patético.
O Ackerman gostava de pensar assim, ainda que sua verdadeira opinião sobre o sistema combinasse mais com as palavras dolorido, destrutivo e talvez avassalador. Kenny trazia consigo uma extensa bagagem de histórias trágicas de seus antepassados que evitava compartilhar com os sobrinhos. E havia também as experiências próprias, que escondia dentro de si tal qual uma sujeira imperceptível embaixo da unha, uma tristeza guardada no fundo falso da gaveta — a última na fila do móvel. Como quando presenciou o suicídio da irmã poucos momentos após ela conceber o pequeno e frágil bebê chamado Mikasa, ou quando viveu aqueles seis meses intensos ao lado dele.
Ele era o indiscutível motivo pelo qual Kenny odiava o Gemelar. Ele surgiu como um salvador para o Ackerman, após tantos anos suportando o fardo mais pesado dos humanos, finalmente tinha encontrado alguém para dividir o jugo, alguém para estrear o amor violento que conservou dentro de si com muito esforço durante toda a sua vida. Até que ele se foi, sem beijos de despedida, ou cartas de adeus. A lâmpada com a luz no fim do túnel repentinamente foi estilhaçada, deixando novamente o perturbador e sombrio breu tomar conta de tudo. Ele deixou Kenny tão rápido quanto o encontrou. O Ackerman se viu desolado, como um cavaleiro que precisa continuar na batalha, porém sequer encontra forças suficientes para empunhar a espada pois seu rei já está morto e não existem mais motivos para lutar ou alguém para proteger.
Por isso Kenny se empenhava dia e noite para evitar que seus sobrinhos passassem pelo sofrimento que apenas o produto da soma entre o Sistema Gemelar e a maldição Ackerman poderia gerar.
— Vai esconder essa marca piscando até quando? — Kenny perguntou.
O Sol havia nascido há pouco, porém os Ackermans já estavam tomando café juntos. Mikasa comia em silêncio, tomando cuidado para não sujar o uniforme do colégio e Levi ajeitava inquieto a longa manga de sua camisa enquanto bebericava uma xícara de chá.
— O que? — questionou Levi, encarando o tio que estava sentado na ponta da mesa.
— Para de bancar o idiota, cacete. Já fazem dois dias que você só usa roupa de frio e nós estamos no meio da porra do verão. Quem é? — Kenny cuspiu as palavras e também alguns farelos de pão.
— Eu também quero saber. Foi no cemitério esses dias levar flores para a Kuchel, não? — Mikasa entrou no diálogo.
— Eu não fui. Essa coisa começou a piscar depois que eu falei com o novo diretor — admitiu Levi.
Kenny achava que seria impossível. Ele fez de tudo para manter seus filhos bem e agora o espírito maligno que perseguia sua família há séculos batia incansávelmente na porta da residência Ackerman, prestes a tragar Levi.
— Isso não faz sentido. Afinal, a nossa maldição é ter almas gêmeas mortas, né pai? — a garota cortou um pedaço de bolo para comer.
Levi e Kenny arregalaram os olhos. Mikasa havia dado forma — com naturalidade exorbitante — ao fantasma invisível que assolava a residência Ackerman através de suas palavras. A maldição Ackerman era um tabu, um assunto restrito que quando surgia em uma conversa era imediatamente repreendido.
— Você sabe como essas divindades são ridículas. Deve ter sido algum erro, como outros vários que eles cometem por aí. Inclusive essa merda de sistema — desconversou.
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Gemelar, Ackerbond
FanfictionAo observarem que a humanidade estava cada vez mais perto de se corromper totalmente pelo ódio, as divindades protetoras da Terra entraram em um consenso e desenvolveram um método para ajudar os humanos a encontrarem o amor. Assim foi instaurado o S...