Prólogo

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Minha amada filha,

Sabei que não posso lhe presentear com o amor de uma mãe, e não sou hipócrita ao afirmar que creio que ela esteja nos observando e nos protegendo. Contudo, tenho a certeza de que ela repousa em paz, e tal certeza deve bastar para confortar nossos corações. Compreendo que meus recursos são limitados, mas por meio destas páginas, concedo-lhe um vislumbre de minha existência, presenteando-vos com algo que jamais lhe será tomado: "O Conhecimento".

-Marccola, Pascal


‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Não é necessário que se pense muito para afirmar que o homem é a pior das criaturas que já caminhou sobre a terra; destruição são as suas pegadas, assolando cada vida que considere necessária para suprir seus anseios egoístas. As Guerras são o meio que os homens buscam para alcançar seu ideal comum, muitas das vezes sendo persuadidos com a falsa esperança do apreço vindo de outros aos quais considerem, que no fim, não passam de homens assim como eles.
‎ ‎ ‎ ‎ ‎ O reconhecimento esperado pode, muita das vezes, ser um terrível engano, e o preço adquire um valor alto demais para que se possa pagar, a morte. Enquanto ela é a causa dos males de muitos, arrebatando-os de angústia, para outros ela é como um inseto a ser esmagado pelas próprios botas, carregando consigo o sentimento assustador da vitória. Qual o motivo? Respeito? Admiração? Não, poder. E apesar de quase toda uma região em seu domínio, os Aliguieri marcham em direção ao seus objetivos, optando pelo caminho que considerem correto, não importando-se com o quão desumano ele seja.
‎ ‎ ‎ ‎ ‎ O reinado do velho Rei Edevin fora um dos mais difíceis aos cidadãos, a comida era escassa, os impostos altíssimos, e com a expansão de seu reino, parte da floresta de caça fora transformada em cinzas, tanto que seus moradores eram sufocados pela fumaça, apelidando então, a antiga e saudosa Palastria como "Reino das Cinzas", o adoecido pela fumaça. Apesar disso, o velho Rei respeitava o acordo de tantos anos atrás, feito entre os primeiros homens civilizados os therianos, jamais atravessando as fronteiras de maneira desrespeitosa, apesar da situação precária em seu próprio Reino, isto até o seu súbito desaparecimento. Nada disso se compara à quando seu filho, Kazamir tomou o trono para si, assumindo a posição de um Rei sádico que parecia não pensar nos prejuízos de seus atos, inesperadamente planejando ataques cada vez mais constantes, forçando jovens rapazes a deixarem o conforto de seus lares para lutarem numa Guerra ao qual não pertenciam, e se quer queriam pertencer, persuadidos pela ideia de uma glória que não pertenceria a ninguém se não ao seu Rei.
‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Foram condenadas como hereges as famílias que se recusavam a seguir suas convicções, perseguidos e abatidos em público, como animais, apenas como uma maneira de encurralar os amedrontados, forçando-os a lutar. Talvez pelo medo, mas principalmente pela manipulação, pouco a pouco os ideais perversos de Kazamir conquistaram numerosas cidades e comunidades, que romperam suas alianças com as criaturas híbridas, enchendo-se de desprezo e torcendo os narizes em caretas à presença dos therianos.
‎ ‎ ‎ ‎ ‎ O conflito passou a tomar proporções ainda maiores quando no solstício de inverno de seu terceiro ano de reinado, o Rei liderou uma frota de navios em direção ao leste, dominando as terras de Etria, tomando os lares e as vidas de centenas de híbridos. Estes que, enfraquecidos, perderam sua liberdade e foram capturados como gado, os poucos que ainda conseguiram resistir, fugiram para a Floresta de Prata, enfrentando o forte abraço da neve como uma chance de sobreviver e buscar refúgio na capital de Noctia. Ter suas vidas tomadas pelos flocos da neve lhes pareceu mais seguro do que tentarem um contra-ataque quando estavam na mais clara desvantagem, sem recursos e enfraquecidos pelo frio. Marcharam deixando seus lares e seus bens para trás, porém carregavam consigo o ódio de verem sua segurança ser desprezada e tomada como se suas vidas não importassem. A Promessa de Paz fora quebrada, e o peso liberado fora o marco do início da Guerra Ardil.
‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Sangue foi derramado por anos, vidas desperdiçadas e tomadas de maneira cruel, deixando somente um rastro vermelho abaixo dos pés do Rei, que a cada minuto de insatisfação, era tomado por algo tão desprezível que parecia queimar seu peito por dentro. Dia após dia, mandava frotas em direção a Theria, dominava seus súditos nas palmas das mãos, se protegia escondido em torres e ordenava os ataques, como peões no meio de um tabuleiro. Suas estratégias pareciam impensadas, impulsivas, mas Kazamir sabia como controlar seus guerreiros, escolhia quais os melhores a sacrificar e fortalecia peças mais valiosas para preparar a melhor estratégia. Os continentes de Victar e Theria tornaram-se grandes inimigos de Guerra, onde no continente ao Oeste, Victar era habitada principalmente por humanos, com exceção dos híbridos aprisionados; já Theria era dominada pelos therianos, híbridos que variavam desde os valentes minotauros até os leais cinocéfalos. Ambos os continentes eram divididos por um longo mar, onde a ilha de Gravas em seu centro, era considerada o único ponto de aliança, embora não utilizasse dos melhores métodos.
‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Uma das cartas na manga do Rei não passava de um homem, um simples homem que adquiriu o dom da criação através do saber. Pascal Marccola não era somente um inventor como os muitos outros que tentavam conquistar a amabilidade da realeza, mas era um dos melhores, talvez o melhor dos pesquisadores e criadores do Reino das Cinzas. Sua motivação era nobre, inspirada de um coração curioso e aventureiro, repleto de juventude, mesmo que agora sua barba esteja grande demais e os fios brancos estejam aparentes, acompanhando os sinais claros da velhice. Essa mesma motivação era o que levava o pesquisador a dias em viagens, estudando nos mínimos detalhes tudo o que poderia absorver, revisando manuscritos de papéis empoeirados e estudando cada incoerência, cada parte confusa, cada informação que pudesse encontrar.
‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Seu notável desenvolvimento fora como acelerar o cair da areia de uma ampulheta. O que antes poderiam demorar semanas para se conseguir, não passava de alguns dias com suas invenções que aceleraram o comércio, o que o deixaria satisfeito se não houvesse um efeito tão contraditório. Ter ideias tão incríveis sendo utilizadas por alguém que considerava ter ideais tão gananceosos era desgastante, principalmente por ter de carregar o peso da destruição vinda algumas de suas invenções, tendo suas descobertas distorcidas para propósitos aos quais jamais aceitaria concordar. Se quer tinha a opção de seguir outro caminho, não com o Rei seguindo seus passos para ter mais. Não quando poderia perder o que tinha de mais precioso por seus erros, por isso mentia, era um como um camaleão escondendo seus verdadeiros desejos. Ouro? Um lar? Nada disso lhe parece valer tanto, ele não se considerava um homem materialista o suficiente para fazer tanto por apetrechos. No entanto, além de um homem ele era um pai, e isso era suficiente para fazer tudo o que estivesse em seu alcance para manter a segurança de sua filha, mesmo que isso signifique ter sua paixão pela criação explorada até a exaustão, sendo utilizada de maneira que odiava imaginar. Ele descobriria tudo o que pudesse para salvar o que considera mais precioso, manipulando tudo o que tiver em suas mãos. Afinal era assim que Pascal se sentia, um objeto manipulado pelas mãos de um governante sádico e de motivações desconhecidas. E ele aceitará ser o seu peão com prazer se isso for o necessário para manter a segurança de Clarissa, sua filha, seu bem mais precioso.

A Cura FatalOnde histórias criam vida. Descubra agora