Caminho por um longo corredor, as paredes já estão velhas e o tom azul desbotado, a diversas portas desgastadas com as numerações faltando, plantas murchas em vasos trincados, uma mesinha e um pequeno espelho sobre cada uma, todo o corredor e exatamente igual, e isso só mostra o descaso com o ambiente de trabalho funcionário público. Até no pós-morte isso aconteceu.
Continuo seguindo meu caminho, falando comigo mesmo em minha mente, às vezes imagino que estou falando com alguém real e não comigo mesmo... Isso faz com que eu me senti um pouco mais feliz e não pense que estou ficando doído ou algo assim.
Passo pela porta noventa mil, mas apenas a ignoro, já que a única porta que me importa é a número noventa e sete mil, quatrocentos e cinquenta e cinco. Eu não ligo que seja uma longa caminhada, pois minha mente está focada em quem será o idiota com quem terei que lidar hoje, provavelmente, mas um que morreu escorregando no banheiro, e no fim, vai ser mesma ladainha de sempre.
- Desculpe informar, senhor, mas você faleceu nas últimas vinte e quatro horas. Sei que é difícil processar essa informação, mas... - E o restante sempre era seguido de seções infernais de choro, lamentações e "eu era tão jovem". Não duvido que os funcionários do inferno recebam mais do que nós. Mas, no fim, essa é a realidade de quem trabalha com os mortos.
Vocês podem me achar insensível, mas passem alguns meses trabalhando na divisão de arquivos e vocês ficarão tão ranzinzas quanto eu... Ou loucos no mínimo. Às vezes me pergunto por que ainda trabalho aqui, não é como se não tivesse escrito minha carta de transferência, e no fim das contas, não é como se eles fossem assinar... Eles apenas a arquivaram, olha que descaso comigo... De qualquer forma, não encontraria um lugar melhor para trabalhar caso eu saísse. Mas não sei, só cansa com o tempo. E eu já estou nessa faz 3 anos, 3 anos praticamente trabalhando como "telemarketing de gente morta"
Aproveito o momento para revisar os relatórios do meu cliente hoje. Toda alma que vem para na passagem perde parte de sua memória ou toda ela, e essas memórias são convertidas nestes relatórios. Toda a vida e a existência de um ser estão aqui nesse pedaço de papel barato. Mas você deve estar se perguntando "por que isso acontece?", bem, meu caro, porque aqui no pós-morte, memórias carregam fortes sentimentos e aqui sentimentos são poder.
Quase todos nesse mundo são assim, e eu me incluo nisso. Morrer e... Na real, eu não sei, não lembro de como eu morri e nem de muita coisa, os engravatados dizem que ter contatos com outras almas e novas experiências estimula as memórias a retornarem. Mas não aconteceu comigo, não com memórias relevantes... Talvez eu me lembre de algo algum dia, algum dia.
Finalmente chego na porta que me foi designada e estranhamente ela esta em bons estados, me olho no pequeno espelho ao lado, eu estava bem como sempre meus pelos negros e feições reptilianas estavam limpas e penteados é meu exoesqueleto ósseo perfeitamente polido, usava um terno formal preto e azul-claro e claramente estava impecável. Reconheço que me esforço demais para ir a um lugar que odeio, para fazer coisas que não ligo muito. E, mais importante, a carranca de desgosto por mais um dia de trabalho estava presente. Eu suspiro e dou um sorriso profissional.
- Vamos Oliver, não é tão ruim assim, só mais um dia como os outros - penteio minhas orelhas para trás e dou um sorriso confiante na frente do espelho para fingir que acredito em minhas próprias palavras, fico de frente à porta - Mas um dia sendo explorado, o que pode dar errado?
Jiro a maçaneta e abro a porta, já me preparando para usar o meu discurso padrão e genérico. Eu olho para a sala estranhamente familiar e para a figura de uma mulher humana sentada em uma cadeira de costas para mim.
- Sinto muito te informar, senhora, mas infelizmente você já não está mais entre os vivos. Eu sei que deve ser difícil processar, mas...
- Trágico, trágico, eu era tão jovem! - Essa voz dramática e provocadora eu a reconheceria em qualquer lugar. Eu olho a sala novamente e a reconheço também. A mulher na cadeira se vira para mim e sorri enquanto enrola uma mecha de seu cabelo rosa no dedo.
- Se está de sacanagem, Mallony - meus ombros caem um pouco e minha paciência vai junto. A tapada na minha frente não era ninguém menos que Mallony Key, a minha chefe.
- Vamos, boca de sacola, se senta logo, nós temos muito o que conversar - minha espinha gela, e não sei se estou surpreso ou confuso. Talvez os dois. Tudo isso, pois Mallony acaba de pegar minha carta de transferência na mão.
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Contos da passagem
ParanormalOliver um assalariado médio que trabalha na área de registros passagem, uma empresa do pós-morte que lida com questões gerais envolvendo almas. Ve sua vida cotidiana monotona mudar drasticamente quando sua chefe o faz um pedido inesperadamente, espe...