Dias Perfeitos

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Joana chega em sua casa. A sensação de alívio, de estar longe da civilização lhe toma por completo. "Infelizmente não por muito tempo", pensa ela após se olhar no espelho que se encontra em seu guarda roupa. Deita-se por um breve período de tempo antes de ouvir o miado de seus gatos.

Acabara de voltar do cinema e não consegue abandonar o vazio e a culpa de não ter aproveitado um momento com dois amigos. Por que se sentir culpada? Somos tão próximos assim? O filme também não lhe agradou. Mas a experiência por completo continua lhe trazendo um sentimento de culpa. - Devo me esforçar e apreciar momentos que não me trazem prazer? Devo ser grata? Por que tal sentimento me acompanha? - sussurra ela.

"Vocês me fazem continuar", diz baixinho enquanto alimenta seus, como a mesma chama, filhos. Não é como se sentisse deprimida: Joana sabe apreciar efêmeros momentos que marcam seu dia a dia. Por isso escreve: escreve sobre seu dia, sobre a faculdade, sobre sua vida. Ninguem vai realmente ler, é uma forma de escape. Escape de uma realidade que não sabe dizer por que a incomoda tanto. Joana deita-se em sua cama e lê um livro. Nada conceituado, nada filosófico. Estava cansada disso. Não queria ler Patrícia Highsmith enquanto sua cabeça estava cheia de pensamentos intrusivos. Isso a lembra de tomar seus remédios.

Caminha mais uma vez para o espelho, dessa vez com um copo d'água e seus remédios. Olha no fundo dos seus olhos, como se uma terceira pessoa a estivesse olhando. Como se pudesse enxergar o fenômeno cru de sua dor. Por que se sentira mal vendo colegas, apreciando um filme? Por um breve momento, Joana permite que a terceira pessoa fale por ela. Como em um processo terapêutico, onde seu interior é destrinchado. Dissociativo. Despersonalizante.
"Não recorro a Deus" - como se Ele existisse, responde o fenômeno.
"Por que me sinto assim?" - e silêncio toma o quarto.

E encara seu corpo. Por breves minutos, não o reconhece. Mas sempre o foi assim. E sempre será, diz pra si mesma. E finalmente deita-se na cama. Um dia que acaba. Não particularmente ruim, não. Apenas um dia. Um dia em que seus questionamentos se aflorem, talvez. A sensação de se sentir deslocada em meio a dois amigos muito próximos, deixada pelo colega mais próximo ao fim da noite , de não entender um filme que discorre justamente sobre pequenos momentos de felicidade no dia a dia. Mas onde estão eles? Por que não posso tê-los? Tenho-os e não aprecio? Seria meu nível de ingratidão tal que devo ser punida por isso? Joana recorre a Deus, por uma fração de segundos: mas não o ouve. Por que Deus lhe colocara um obstaculo?

Mas apenas um dia.

Ohne Titel (oder die unerträgliche Last des Alleinseins)Onde histórias criam vida. Descubra agora