Prólogo

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O cheiro era insuportável. Tudo o que ele conseguia ver eram borrões e vultos, como se todo o caos estivesse acontecendo lentamente ao seu redor, fantasmas valsando ao som de uma ópera muda e apavorante. Sua visão estava turva por algo quente que escorria em seu rosto até o queixo, ele lambeu o lábio e sentiu o gosto metálico descer pela garganta seca ao mesmo tempo que sugava toda a sua lucidez. Era como estar fora do próprio corpo, era como observar seus próprios pensamentos. Ele passou a manga da casaca em trapilhos no rosto e conseguiu limpar um pouco de seus olhos, o suficiente para ver o campo a sua frente. E os corpos, caídos um sobre o outro como um grande tabuleiro de dominós que ele costumava jogar quando criança.

O barulho dos canhões e dos rifles era ensurdecedor e ele estava muito à vista, caído sobre algo macio, tentou levantar mas sua perna esquerda não obedeceu ao comando. Os franceses estavam recuando, a Inglaterra venceu. Porém não conseguia comemorar, por que estava ali?

Para cumprir seu dever, é claro.

Jamie se firmou sobre os cotovelos e então forçou o tronco para cima até conseguir se sentar. Olhou para a perna, seu pé estava virado de forma muito drástica para a esquerda, mas ele não sentia dor. Não sentia nada.

Mordeu o lábio inferior e contou até três antes de usar as duas mãos para virar o pé de volta para o lugar. O som de seu osso encaixando fez com que um grito saísse de sua garganta como um raio. Deixando sua visão turva. Ele gemeu sentindo uma dor alucinante. Sua visão vacilou por alguns minutos e ele escorou as costas no seja-lá-o-que-estivesse-embaixo-dele. Depois que a dor se tornou um pouco mais tolerável se pôs em pé, colocando o rifle pendurado no peito.

Onde ele estava? Era Waterloo, mas onde exatamente estava? 

— Major! — ele ouviu um grito vindo de suas costas. — Pensávamos que estava morto! 

Ele não conseguiu distinguir de onde a voz vinha, parecia um eco em uma sala cheia de água, olhou e viu um soldado vindo correndo em sua direção e apontou o rifle para ele. 

— Calma senhor, sou eu, sargento Wilson. — Ele disse erguendo as mãos para cima. — O resto dos homens estão voltando para a mata. Ainda não é totalmente seguro.

O homem estava vestindo o casaco escarlate das tropas britânicas, banhado em sangue, barro e algo que Jamie não conseguiu descobrir.

— Estão todos lá? — sua voz soou estranha para seus próprios ouvidos.

O soldado ficou em silêncio olhando para ele como se fosse um ser estranho.

— Perguntei se estão todos lá! — ele urrou entredentes.

— O cabo Thomas, senhor…

Jamie sentiu um choque percorrer seu corpo, como se o colocasse de volta a realidade, ele apertou o rifle.

— Encontraram o corpo?

— Major, é melhor…

— Perguntei — agora seu tom era mortal — se encontraram o corpo.

— Não, senhor.

— Então ele ainda pode estar vivo — Jamie se virou para dar meia volta mas o homem o agarrou pelo braço. 

—Major, é arriscado…

Porém, Jamie se desvencilhou do braço do homem e lhe lançou um olhar mortal usando o tom de voz aristocrático que sempre ouvia de seu pai e que jurou jamais usar — Ninguém vai ficar aqui.

O homem o encarou por alguns segundos, então fez um sinal sentido e o seguiu em silêncio. 

O céu estava cinza escuro e havia neblina e lama para todo lado. Estava frio e Jamie não sabia se ao caminhar, estava pisando em barro ou em alguém, ele parou e observou ao redor, não sabia quanto havia caminhado pois não estava tão lúcido assim, sua cabeça doía como se estivesse rachando ao meio. Mas ele não iria parar, ninguém iria ficar para trás. Era uma promessa.

Segurou o rifle com mais firmeza e fez um sinal para o sargento Wilson esperar, e caminhou um pouco mais a frente tentando ver algo através da neblina até que deu um passo e ouviu um gemido.

Ele respirava de forma contida, percebeu. Então pisou de novo para ter certeza.

— Ahhhrg.

Ele conhecia aquela voz. — Thomas? 

— Ma-major? – sua voz estava abafada, 

Jamie suspirou se agachando, tirando o boldrié e colocando o rifle no chão.

— Thomas, sou eu, garoto. — ele se abaixou, apenas o braço, o ombro e um pouco do rosto de Thomas estava visível. Ele estava embaixo de um amontoado de madeiras, terra e outros soldados.

Ele ouviu o menino fungar. — Graças a Deus, graças a Deus… — ele começou a repetir com a voz abafada. — Pensei que ia morrer aqui, senhor, pensei que…ah meu Deus estou cego, senhor, estou cego…

— Shhhh o desespero não é o melhor caminho. — ele disse, engolindo seco, ele mesmo estava desesperado. Mas era o Major daquele pelotão, jurou pela coroa que iria proteger e dar o melhor pelos homens que confiaram sua vida a ele. Não iria deixar que isso nada acontecesse.

O sargento apareceu e levou a mão à boca ao ver Thomas. Porém Jamie o instruiu a puxar o garoto enquanto ele levantava os corpos, depois de alguns minutos conseguiram erguer Thomas e felizmente ele estava inteiro.  

Com cuidado Jamie pegou seu cantil e virou a água no rosto sujo do garoto, ele tinha dezessete anos, quando chegou no pelotão ainda não havia perdido o rosto rechonchudo e bochechas rosadas da infância de forma que parecia mais jovem. Mas agora, havia algo que mudara em seu semblante. O pânico, talvez. As lembranças e marcas que a guerra deixaria em sua alma para sempre.

Thomas piscou os olhos, então começou a rir e a chorar. — Eu estou vendo.

— Era barro, você não estava cego. 

O garoto sorriu entre as lágrimas de alívio. 

Porém a vitória não durou muito e a tempestade chegou após a calmaria. Sua expressão alegre se transformou quando um tiro cortou o silêncio o acertando bem no antebraço. O garoto se contorceu de dor enquanto gritava.
Jamie se abaixou para pegar o rifle mas era tarde demais, primeiro, como em câmera lenta eles viram um clarão. E então, outro disparo em direção à eles.

Jamie acordou em um sobressalto. Estava ofegante e suado e não havia mais nenhum lençol na cama. Seu estômago estava embrulhado e a cabeça doía, e seu coração parecia querer sair do peito. Passou a mão no rosto afastando os cabelos molhados da testa. Ele se sentou e levou alguns minutos para se acalmar e lembrar que estava vivo. Tateou seu redor com os olhos arregalados porém sem ver de fato, não estava sentado sobre o barro, mas sim sobre seu colchão.. Ele estava na Inglaterra e estava vivo.

Havia sobrevivido. Waterloo havia acabado, eles venceram.

E havia se passado mais de um ano.

Ele estava vivo.

Ele era Jamie e agora era o duque de Hariston.

Ele estava vivo.

Jamie fechou e abriu os olhos – o olho que sobrara. E olhou em volta, seu quarto estava em silêncio e a única claridade era a da lua cheia que entrava pela janela da varanda. Ainda faltavam algumas horas para o sol nascer, mas Jamie sabia que não conseguiria dormir de novo.

— Deus… — ele suspirou enfiando a cabeça nas mãos sentindo a exaustão o engolir. Ele ainda vinha tendo pesadelos quase todas as noites, como um lembrete de tudo o que - deveria - ter acabado lá. — me ajude…

Jamie se deitou, com os braços abaixo da cabeça, tentando controlar sua respiração. focando seus pensamentos nas coisas que ele conseguia ouvir, no que conseguia sentir - de verdade, como seu diafragma que ele se concentrou para que subisse e descesse de forma compassada.

Ele era Jamie, e estava vivo. 

Só não sabia se aquilo era, realmente, algo bom.

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