PARTE UM: SOMBRAS

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As fronteiras do nosso país, senhor? Como assim, senhor? Pelo norte, fazemos fronteira com a Aurora Boreal; pelo leste, com o sol nascente; pelo sul, com a procissão dos Equinócios; e, pelo oeste, com o Dia do julgamento Final.
— O livro de piadas americanas, de Joe Miller

Shadow havia cumprido três anos de prisão. Era bem grande e tinha uma cara de "não-se-meta-comigo", por isso seu maior problema era como fazer o tempo passar. Assim, mantinha o corpo em forma, treinava alguns truques com moedas e pensava no quanto amava sua mulher.
Na opinião de Shadow, a única coisa boa no fato de estar na prisão era um sentimento de alívio. O sentimento de ter mergulhado o máximo possível e atingido o fundo. Não se preocupava mais se o homem iria pegá-lo, porque já o havia pegado. Não tinha mais medo do que o amanhã traria, porque o ontem já trouxera o que estava reservado para ele.
Shadow resolveu que não fazia a mínima diferença se você havia mesmo feito aquilo pelo que fora condenado. Todo mundo que ele conheceu na prisão fora injustiçado em algum momento: sempre existia algo que as autoridades entenderam errado, algo que disseram que você fez quando, na verdade, não fez — ou que você não fez bem do jeito que eles falaram que você fez. O que importava é que tinham pegado você.
Percebeu isso logo nos primeiros dias, quando tudo, desde a gíria até a comida ruim, era novo. Apesar do sofrimento e da profunda sensação arrepiante de estar encarcerado, ele respirava aliviado.
Shadow tentava não falar muito. Por volta do seu segundo ano de prisão, mencionou algo sobre sua teoria a Low Key Lyesmith, seu companheiro de cela.
Low Key, um golpista de Minnesota, mostrou seu sorriso de cicatriz.
— É — disse. — É verdade. É até melhor se você for condenado à morte. É quando se lembra das piadas sobre os caras que chutaram as botas pra longe, quando sentiram o laço apertar o pescoço, porque os amigos sempre falavam que ele ia morrer de botas.
— Isso é uma piada? — perguntou Shadow.
— Claro que sim. Piada de enforcado. O melhor tipo que existe.
— Quando foi que enforcaram o último homem neste Estado?
— Como é que eu vou saber?
Lyesmith mantinha seus cabelos ruivo-alaranjados bem aparados. Dava para ver as marcas de seu crânio.
— Vou dizer uma coisa pra você. Este país começou a ir pro inferno quando pararam de enforcar os caras. Não tem mais a sujeira da forca. Não tem mais o negócio da forca.
Shadow deu de ombros. Não conseguia ver nada de romântico em uma sentença de morte.
Resolveu que, se você não está condenado à morte, a prisão é algo como uma suspensão temporária da vida. Por dois motivos. Primeiro, a vida se esgueira de volta para a prisão. Sempre há lugares mais baixos para se ir. A vida continua. E, segundo, se você aguentar ficar lá, um dia vão ter que deixar você sair.
No começo, era muito distante para Shadow a ideia de sair da prisão. Então, não conseguia se concentrar no dia da saída, o que se transformou em um raio de esperança longínquo. Quando a merda da prisão vinha à tona — e a merda da prisão sempre vem à tona — aprendeu a dizer a si mesmo: "Isso também vai passar". Um dia a porta mágica se abriria e ele a atravessaria. Por isso, marcava os dias no seu calendário de Pássaros Canoros da América do Norte, o único calendário vendido no armazém da prisão. O sol se punha e ele não via, o sol se levantava e ele não via. Treinava truques com moedas vistos num livro que encontrara na desolação da biblioteca da prisão, fazia exercícios e elaborava listas em sua cabeça sobre o que faria quando saísse dali.
As listas de Shadow iam ficando cada vez mais curtas. Depois de dois anos, só havia três coisas.
Primeiro, ele tomaria um banho de banheira. Um banho de verdade, comprido, ficaria de molho em uma banheira com espuma. Talvez lesse um jornal, talvez não. Em alguns dias pensava de um jeito, em outros dias, de outro.
Segundo, ele se enxugaria e vestiria um roupão. Talvez chinelos. Gostava da ideia de usar chinelos. Se fumasse, fumaria um cachimbo, mas ele não fumava. Pegaria a mulher nos braços ("Cachorrinho", ela guincharia com medo fingido e cheia de prazer de verdade, "o que você está fazendo?"). Ele a carregaria para dentro do quarto e fecharia a porta. Se ficassem com fome, poderiam pedir pizzas.
Terceiro, depois de ele e Laura saírem do quarto, passados uns dois dias, andaria de cabeça baixa e ficaria longe de confusão para o resto da vida.
— E daí você seria feliz? — perguntou Low Key Lyesmith. Naquele dia, trabalhavam na oficina da prisão, montando comedouros de passarinhos, o que era quase tão interessante quanto gravar placas de carros.
— Não diga que um homem é feliz — disse Shadow — até que ele esteja morto.
— Heródoto — disse Low Key. — Oba! Você está aprendendo.
— Quem diabos é Heródoto? — perguntou Iceman, enquanto encaixava as laterais de um comedouro de passarinho e o entregava a Shadow, que aparafusava e prendia a peça com firmeza.
— Um grego morto — disse Shadow.
— Minha última namorada era grega — disse Iceman. — A merda que a família dela comia... Vocês não iam acreditar. Arroz enrolado numas folhas, ou alguma merda desse tipo.
Iceman tinha o mesmo tamanho e formato de uma máquina de Coca-cola, com olhos azuis e cabelos tão louros que eram quase brancos. Havia dado umas porradas em um cara qualquer, que cometera o erro de passar a mão na namorada dele no bar em que era dançarina. Os amigos do cara chamaram a polícia, Iceman foi preso e os policias puxaram a ficha dele, revelando que fora solto em um programa de liberdade condicional, dezoito meses antes.
— O que é que eu devia fazer? — perguntou Iceman, injuriado, quando contou toda a triste história a Shadow. — Eu tinha falado pra ele que ela era minha namorada. Ia deixar ele me desrespeitar daquele jeito? Ia? Ele passou a mão nela toda.
Shadow respondeu "diz isso para eles", e deixou por isso mesmo. Uma coisa que ele aprendeu logo é que você cumpre sua própria pena na prisão. Você não cumpre a pena por ninguém.
Abaixe a cabeça. Cumpra sua própria pena.
Vários meses antes, Lyesmith havia emprestado a Shadow uma cópia em brochura bem gasta das Histórias, de Heródoto. "Não é chato. É legal", argumentou quando Shadow declarou não ler livros. "Lê primeiro, depois me diz se é legal."
Shadow fez uma careta, mas começou a ler, e descobriu-se fisgado contra sua própria vontade.
— Gregos — disse Iceman, com nojo. — E nem é verdade o que falam deles por aí. Eu tentei comer o eu da minha namorada, ela quase arrancou meus olhos fora.
Lyesmith foi transferido certo dia, sem aviso. Deixou sua cópia de Heródoto com Shadow. Havia um níquel escondido entre as páginas. Moedas eram contrabando: dá para afiar as bordas com uma pedra e cortar a cara de alguém em uma briga. Shadow não queria uma arma; Shadow só queria algo para fazer com as mãos.
Shadow não era supersticioso. Não acreditava em nada que não pudesse ver. Ainda assim, conseguia sentir o desastre pairando sobre a prisão naquelas semanas finais, do mesmo jeito que sentiu nos dias que precederam o roubo. Sentia um vazio na boca do estômago que, disse a si mesmo, era só medo de voltar para o mundo lá fora. Mas não podia ter certeza. Estava mais paranóico do que o normal — e, na prisão, o normal é muito, além de ser uma estratégia de sobrevivência. Shadow ficou mais quieto, mais sombrio, do que nunca. Começou a observar a linguagem corporal dos guardas, dos outros presidiários, procurando uma pista da coisa ruim que iria acontecer. Ele tinha certeza de que iria.
Um mês antes do dia marcado para sua soltura, Shadow estava em um escritório frio, sentado de frente para um homem baixo com uma mancha de nascença na testa da cor de vinho do Porto. Estavam cada um de um lado de uma escrivaninha; o homem tinha a ficha de Shadow aberta à sua frente e segurava uma caneta esferográfica. A ponta da caneta estava bem mastigada.
— Está com frio, Shadow?
— Estou — respondeu. — Um pouco. O homem deu de ombros.
— O sistema é esse — ele disse. — As fornalhas não começam a funcionar antes de 1o de dezembro. Depois são desligadas dia 1o de março. Não sou eu quem faz as regras.
O homem correu os dedos pela folha de papel grampeada na parte esquerda interna da pasta:
— Você tem 32 anos?
— Sim, senhor.
— Você parece mais novo.
— É a vida limpa.
— Diz aqui que você é um presidiário-modelo.
— Eu aprendi minha lição, senhor.
— É mesmo?
Ele olhava para Shadow com intensidade, fazendo com que a marca de nascença em sua testa ficasse mais para baixo. Shadow pensou em contar ao homem algumas de suas teorias sobre a prisão, mas não disse nada. Ao contrário, assentiu com a cabeça e concentrou-se em parecer apropriadamente cheio de remorso.
— Diz aqui que você tem mulher, Shadow.
— O nome dela é Laura.
— Como estão as coisas lá?
— Estão bem. Ela veio me visitar quando pôde, mas é uma viagem muito longa. A gente se escreve e eu telefono quando dá.
— O que a sua mulher faz?
— Ela é agente de viagem. Manda gente pró mundo inteiro.
— Como você conheceu ela?
Shadow não conseguiu descobrir por que o homem estava perguntando aquilo. Achou que não tinha nada a ver contar para ele, então disse:
— Ela era a melhor amiga da mulher do meu melhor amigo. Eles armaram um encontro às escuras entre nós dois. Deu certo.
— Há um emprego esperando por você?
— Sim, senhor. Meu amigo, Robbie, esse de quem eu acabei de falar, tem uma academia, a Muscle Farm, onde eu costumava treinar. Ele diz que o meu antigo trabalho está esperando por mim.
Uma sobrancelha se levantou.
— É mesmo?
— Diz que acha que eu vou ser uma grande atração. Vou trazer de volta alguns alunos das antigas e chamar o pessoal durão que quer ficar ainda mais forte.
O homem pareceu satisfeito. Mordeu a ponta de sua caneta esferográfica e então virou a folha de papel.
— Como você se sente em relação ao seu delito? Shadow deu de ombros:
— Eu fui estúpido — disse, e foi sincero.
O homem da marca de nascença suspirou. Assinalou vários itens de uma lista. Então, folheou os papéis na ficha de Shadow.
— Como é que você vai daqui pra casa? — perguntou. — De ônibus? — De avião. É bom ter uma mulher que é agente de viagem.
O homem fez uma careta, e a marca de nascença pareceu mais profunda.
— Ela mandou sua passagem?
— Não precisa. Mandou um número de confirmação. Bilhete eletrônico. Eu só preciso aparecer no aeroporto daqui a um mês, mostrar minha identidade e estarei fora daqui.
O homem assentiu com a cabeça, rabiscou uma anotação final, então fechou a ficha e colocou a caneta esferográfica sobre a mesa. Duas mãos pálidas repousaram sobre a escrivaninha como animais cor-de-rosa. Ele juntou as mãos, fez uma igrejinha com os indicadores e, com os olhos úmidos, cor-de- avelã, olhou diretamente para Shadow.
— Você tem sorte — ele disse. — Você tem alguém pra quem voltar, tem um trabalho à sua espera. Pode deixar tudo isto pra trás. Você tem uma segunda chance. Aproveite o melhor que puder.
O homem não se ofereceu para apertar a mão de Shadow quando se levantou, mas ele também não esperava que o fizesse.
A última semana foi a pior. De certa maneira, era pior do que os três anos juntos. Shadow se perguntava se seria o clima: opressivo, parado e frio. Parecia que uma tempestade estava se aproximando, mas nunca chegava. Ele tinha tremores de medo e de ansiedade, uma sensação no fundo do estômago de que algo estava totalmente errado. No pátio de exercícios, o vento soprava forte. Shadow quase sentia o cheiro da neve no ar.
Ligou a cobrar para a mulher. Shadow sabia que as companhias telefônicas arrancavam uma sobretaxa de 3 dólares para cada ligação feita de um telefone de prisão. Shadow resolveu que era por isso que as telefonistas eram sempre muito educadas com as pessoas que ligavam das prisões: sabiam que eles pagavam o salário delas.
— Alguma coisa está esquisita — explicou a Laura. Aquilo não foi a primeira coisa que ele lhe disse. A primeira coisa foi "eu amo você", porque é uma boa coisa de se dizer se você é sincero, e Shadow era.
— Oi — disse Laura. — Eu também amo você. O que é que está esquisito?
— Não sei — ele disse. —'Talvez seja o tempo. Parece que, se pelo menos caísse uma tempestade, tudo ficaria bem.
— Aqui o tempo está bonito — ela disse. — As últimas folhas ainda não caíram. Se não tiver nenhuma tempestade, você ainda poderá ver quando chegar em casa.
— Cinco dias — falou Shadow.
— 120 horas, e daí você vem pra casa.
— Está tudo bem aí? Nada de errado?
— Está tudo ótimo. Vou me encontrar com Robbie hoje à noite. Estamos planejando sua festa-surpresa de boas-vindas.
— Festa-surpresa?
— Claro. Você não sabe nada sobre isso, sabe?
— Nadinha.
— Esse ê o meu marido.
Shadow percebeu que estava sorrindo. Estava lá dentro havia três anos, mas ela ainda conseguia fazê-lo sorrir.
— Te amo, meu bem — disse Shadow.
— Te amo, cachorrinho — respondeu Laura. Shadow desligou.
Quando se casaram, Laura disse a Shadow que queria um cachorrinho, mas o proprietário havia chamado atenção para o fato de que não era permitido ter bichos de estimação, de acordo com o contrato de aluguel.
— Ei — Shadow falara na ocasião —, eu vou ser seu cachorrinho. O que você quer que eu faça? Morda seus chinelos? Mije no chão da cozinha? Lamba seu nariz? Enfie o focinho no meio das suas pernas? Aposto que não tem nada que um cachorrinho faz que eu não possa fazer!
E ele a pegou no colo, como se ela não pesasse nada, e começou a lamber seu nariz, enquanto ela ria e gargalhava, e depois a carregou até a cama.
No refeitório, Sam Fetisher veio se esgueirando por entre as mesas na direção de Shadow e sorriu, mostrando seus dentes velhos. Sentou-se ao lado dele e começou a comer seu macarrão com molho de queijo.
— Precisamos conversar — disse Sam Fetisher.
Sam Fetisher era um dos homens mais negros que Shadow já vira. Ele podia ler uns 60 anos. Ou talvez 80. Mas Shadow havia conhecido viciados em crackque tinham 30 anos, porém pareciam mais velhos que Fetisher.
— Hmm? — murmurou Shadow.
— Vem aí uma tempestade — comentou Sam.
— Parece que sim — disse Shadow. — Talvez neve logo.
— Não esse tipo de tempestade. Uma tempestade maior do que essa que está vindo. Estou dizendo, garoto, você vai estar melhor aqui do que lá fora, na rua, quando a grande tempestade chegar.
— Cumpri minha pena. Na sexta, vou embora. Sam Fetisher olhou nos olhos de Shadow:
— De onde você vem? — perguntou.
— Eagle Point, Indiana.
— Você é uma porra de um mentiroso — disse Sam Fetisher. — Estou perguntando qual é a sua origem. De onde os seus pais vieram?
— Chicago.
Quando menina, sua mãe havia morado lá, para onde voltara pouco antes de morrer, muitos anos atrás.
— Como eu disse. Grande tempestade chegando. Mantenha a cabeça baixa, garoto Shadow. É como se... como é que chamam aquelas coisas em que os continentes se apóiam? Uns tipos de placas?
— Placas tectônicas? — Shadow arriscou.
— É isso aí. Placas tectônicas. É igual quando elas começam a andar, a América do Norte vai escorregando pra cima da América do Sul, você não vai querer estar no meio. Sacou?
— Nem um pouco.
Um olho castanho se fechou em uma piscadela vagarosa.
— Diabos, não vai dizer que eu não avisei — disse Sam Fetisher, e enfiou na boca uma colherada de gelatina de laranja tremelicante.
— Não vou.
Shadow passou a noite meio acordado, alternando períodos de sono e de vigília, ouvindo seu novo companheiro de cela resmungar e roncar no beliche embaixo dele. A várias celas de distância, um homem choramingava, berrava e soluçava como um animal, e de vez em quando alguém gritava para ele calar a boca. Shadow tentava não escutar. Deixava os minutos vazios passarem por ele, solitários e vagarosos.
Dois dias para ir embora. Quarenta e oito horas, que começaram com mingau de aveia e café da prisão, e um guarda chamado Wilson que bateu no ombro de Shadow, mais forte do que precisava, e disse:
— Shadow, por aqui.
Shadow analisou sua consciência. Estava tranquila, o que, na prisão, não significava estar livre de uma merda muito grande. Os dois homens caminhavam mais ou menos lado a lado, os pés ecoando sobre o concreto e o metal.
Shadow sentiu o gosto do medo no fundo da garganta, amargo como café velho. A coisa ruim estava acontecendo...
Uma voz no fundo de sua mente dizia que iam enfiar mais um ano na sentença dele, jogá-lo na solitária, cortar fora suas mãos e sua cabeça. Ele tentava se convencer de que estava sendo estúpido, mas seu coração batia tão forte que parecia explodir no peito.
— Não entendo você, Shadow — Wilson disse, enquanto eles caminhavam.
— O que é que tem pra não entender, senhor?
— Você. Você é quieto pra caralho. Educado demais. Fica esperando que nem os caras velhos, mas você tem o quê? 25? 26?
— 32,senhor.
— E o que você é? Latino? Cigano?
— Não que eu saiba, senhor. Talvez.
— Talvez você tenha sangue de preto. Você tem sangue de preto, Shadow?
— Pode ser, senhor.
Shadow estava com o corpo ereto e olhava diretamente para a frente Concentrava-se em não permitir que esse homem o irritasse.
— É mesmo? Bom, só sei que você me assusta pra caralho. Wilson tinha cabelos louro-amarelados, cara louro-amarelada e sorriso louro-amarelado.
— Você vai nos abandonar logo, logo.
— Espero que sim, senhor.
Passaram por alguns portões de controle, Wilson mostrava sua identidade toda vez. Subiram um lance de escadas, e estavam do lado de fora do escritório do diretor da prisão. O nome do diretor da prisão — G. Patterson — estava escrito em letras pretas na porta, ao lado da qual havia um semáforo em miniatura, cuja luz vermelha ardia.
Wilson apertou um botão embaixo do semáforo.
Ficaram lá parados durante alguns minutos. Shadow tentava dizer a si mesmo que tudo estava bem, que na sexta de manhã estaria dentro do avião rumo a Eagle Point, mas ele próprio não acreditava nisso.
A luz vermelha se apagou, a luz verde se acendeu, e Wilson abriu a porta. Entraram Shadow viu o diretor um punhado de vezes nos últimos três anos. Uma vez, quando mostrou as instalações a um político. Outra, durante uma paralisação, quando falou com os presos em grupos de cem, explicando que havia uma superpopulação na prisão, e que, como a situação permaneceria igual, era melhor que se acostumassem.
De perto, Patterson tinha aparência pior. Seu rosto era alongado, os cabelos grisalhos cortados em estilo escovinha, bem eriçados. Ele cheirava à loção pós- barba Old Spice. Atrás dele havia uma prateleira cheia de livros, todos com a palavra Prisão no título. Sua escrivaninha era perfeitamente organizada, vazia, a não ser por um telefone e um calendário com piadinhas cínicas, daqueles de que se arrancam as folhas. Ele usava um aparelho auditivo no ouvido direito.
— Por favor, sente-se.
Shadow sentou-se. Wilson ficou em pé atrás dele.
O diretor abriu uma gaveta da escrivaninha e tirou uma ficha, colocou-a sobre a escrivaninha.
— Diz aqui que você foi sentenciado a seis anos por agressão grave e por espancamento. Você cumpriu três anos. Seria solto na sexta.
Seria? Shadow sentiu o estômago balançar dentro da barriga. Ficou imaginando quanto tempo mais precisaria cumprir pena — mais um ano? Dois anos? Os três inteiros? Tudo que disse foi:
— Sim, senhor.
O diretor lambeu os lábios:
— O que foi que você disse?
— Eu disse sim, senhor.
— Shadow, nós o soltaremos hoje, no fim da tarde. Você vai sair uns dias mais cedo.
Shadow assentiu com a cabeça, e ficou esperando a tempestade que sempre vem depois da bonança. O diretor olhou para o papel sobre a escrivaninha:
— Isto aqui veio do Hospital Johnson Memorial, em Eagle Point... Sua mulher... Ela morreu nas primeiras horas desta manhã. Foi um acidente automobilístico. Sinto muito. Shadow assentiu com a cabeça mais uma vez.
Wilson acompanhou-o de volta à sua cela, sem dizer nada. Destrancou a porta e deixou Shadow entrar. Então, disse:
— É como se, quando vem uma notícia boa, a notícia ruim tirasse sarro.
Boa notícia, vamos deixar você sair mais cedo; má notícia, sua mulher está morta. Ele riu, como se aquilo fosse genuinamente engraçado. Shadow não disse absolutamente nada, Entorpecido, embalou alguns de seus pertences e distribuiu a maior parte. Deixou para trás o Heródoto, de Low Key, o livro de truques com moedas e, com um sofrimento momentâneo, abandonou os discos de metal pálido surrupiados da oficina, que haviam servido como moedas. Haveria moedas, moedas de verdade, do lado de fora. Shadow fez a barba. Vestiu-se com roupas civis. Atravessou uma porta depois da outra, sabendo que nunca mais as atravessaria no sentido contrário. Sentia um vazio por dentro.
A chuva tinha começado a cair, em rajadas, do céu cinzento, uma chuva congelante. Farpas de gelo pinicavam o rosto de Shadow, enquanto a chuva ensopava seu sobretudo fino. Os presidiários libertados caminhavam em direção ao ex-ônibus escolar amarelo que os levaria para a cidade mais próxima.
Quando chegaram ao ônibus, estavam ensopados. Oito deles iam embora. Mil e quinhentos ainda sobravam lá dentro. Shadow sentou-se no ônibus e tremeu até os aquecedores começarem a funcionar. Pensava no que iria fazer, para onde iria agora.
Imagens de fantasmas enchiam sua cabeça, espontaneamente. Na sua imaginação, deixara outra prisão, muito tempo atrás.
Ele havia ficado preso em uma cela sem luz por tempo demais: sua barba estava desgrenhada e seu cabelo, embaraçado. Os guardas acompanharam-no por uma escada de pedra cinzenta, que ia para baixo e para dentro de uma praça pública cheia de coisas de cores fortes, de pessoas e de objetos. Era dia de feira e ele ficou tonto pelo barulho e pelas cores. Apertava os olhos por causa da luz do sol que enchia a praça e sentia o cheiro salobro e úmido do ar e de todas as coisas boas da feira. À sua esquerda, o brilho do sol refletia na água...
O ônibus deu uma freada brusca, em um sinal vermelho.
O vento uivava em volta do ônibus, e os limpadores de pára-brisa iam pesadamente de um lado para o outro, borrando a cidade de uma umidade amarela e vermelha néon. Era o começo da tarde, mas através do vidro parecia noite .
— Caralho! — disse o homem no banco atrás de Shadow, desembaçando o vidro da janela com a mão e olhando para a figura molhada que corria pela calçada. — Tem boceta lá fora.
Shadow engoliu seco. Ocorreu-lhe que ele ainda não tinha chorado — na verdade, não havia sentido absolutamente nada. Nenhuma lágrima. Nenhum lamento. Nada.
Ele percebeu que estava pensando em um cara chamado Johnnie Larch, com quem havia dividido a cela assim que fora colocado lá dentro. Larch disse a Shadow como havia conseguido sair, depois de cinco anos atrás das grades, com cem dólares no bolso e uma passagem para Seattle, onde sua irmã morava.
Johnnie Larch tinha chegado ao aeroporto e entregara sua passagem para a mulher no balcão, que pedira para ver sua carteira de motorista.
Ele a mostrou. Havia vencido uns anos antes. Ela lhe disse que aquilo não valia como identificação. Ele lhe falou que talvez não valesse como carteira de motorista, mas que era uma porra de identificação, e dane-se. Quem ela pensava que ele era, se não fosse ele mesmo?
Ela disse que agradecia por ele manter seu tom de voz baixo.
Ele lhe disse que entregasse a porra de um cartão de embarque, ou ela iria se arrepender. Ele não iria ser desrespeitado. Não se admite desrespeito na prisão.
Então ela apertou um botão e, alguns instantes mais tarde, seguranças do aeroporto apareceram e tentaram convencer Johnnie Larch a deixar o aeroporto calmamente, mas ele não queria ir embora, e houve uma espécie de discussão.
A conclusão disso tudo foi que Johnnie nunca chegou de fato a Seattle e passou os dias que se seguiram nos bares da cidade. Quando seus cem dólares acabaram, assaltou um posto de gasolina com um revólver de brinquedo, para continuar a beber, e a polícia finalmente o pegou por mijar na rua. Logo, ele estava de volta, cumprindo o resto de sua sentença e mais um pequeno extra pelo serviço no posto de gasolina.
E a moral da história, de acordo com Johnnie Larch, era essa: não irrite as pessoas que trabalham em aeroportos.
— Tem certeza de que não é algo como: "O tipo de comportamento que funciona em um determinado ambiente, como a prisão, pode falhar e de fato ser prejudicial quando usado fora daquele ambiente"? — perguntou Shadow quando Johnnie Larch contou a história.
— Não, ouça o que eu digo, estou/alando pra você, cara — disse Johnnie Larch. — Não irrite as vacas nos aeroportos.
Shadow deu um meio-sorriso quando se lembrou disso. Sua carteira de motorista ainda demoraria vários meses para vencer.
— Rodoviária! Todo mundo pra fora!
O prédio fedia a mijo e a cerveja azeda. Shadow entrou em um táxi e pediu ao motorista que o levasse para o aeroporto. Disse que lhe daria cinco dólares extras se ele ficasse em silêncio. Chegaram lá em vinte minutos, e o motorista não proferiu nenhuma palavra.
Shadow tropeçava pelo terminal do aeroporto, claramente iluminado. Estava preocupado com o negócio do bilhete eletrônico. Sabia que tinha uma passagem para viajar na sexta, mas não sabia se serviria hoje. Qualquer coisa eletrônica parecia fundamentalmente mágica a Shadow e suscetível de evaporação a qualquer instante.
No entanto, estava de novo com sua carteira pela primeira vez em três anos. Havia vários cartões de crédito vencidos e um cartão Visa que, ficou feliz em descobrir, não venceria até o fim de janeiro. Ele tinha um número de reserva. Estava certo de que, após chegar em casa, tudo ficaria, de um jeito ou de outro, melhor. Laura estaria bem novamente. Talvez aquilo fosse algum tipo de truque para liberá-lo alguns dias mais cedo. Ou talvez fosse apenas uma confusão: o corpo de alguma outra Laura Moon havia sido retirado dos destroços na estrada.
Raios caíam do lado de fora do aeroporto, através das janelas-parede. Shadow percebeu que prendia a respiração, esperando algo acontecer. Distante, um estrondo de trovão. Ele respirou aliviado.
Uma mulher branca, cansada, olhava para ele de trás do balcão.
— Oi — disse Shadow. Você é e primeira mulher desconhecida, em carne e osso, com quem eu falo nos últimos três anos. — Tenho um número de bilhete eletrônico. Eu deveria viajar na sexta, mas preciso ir hoje. Teve uma morte na minha família.
— Hmm. Sinto muito por isso.
Ela digitou no teclado, olhou para a tela, digitou de novo:
— Sem problema. Coloquei você no voo das três e meia. Pode atrasar por causa da tempestade, por isso é melhor ficar de olho nas telas. Tem alguma bagagem pra despachar?
Ele levantou uma mochila:
— Não preciso despachar isto, preciso?
— Não — ela disse. — Está ótimo. Você tem alguma identificação com foto?
Shadow mostrou sua carteira de motorista.
Não era um aeroporto grande, mas o número de pessoas vagando por lá, andando de um lado para o outro, surpreendeu Shadow. Viu pessoas jogando malas sem cuidado, observou carteiras cheias em bolsos traseiros, viu bolsas largadas embaixo de cadeiras, sem que ninguém estivesse por perto. Então percebeu que não estava mais na prisão.
Trinta minutos de espera antes do embarque. Shadow comprou uma fatia de pizza e queimou o lábio no queijo quente. Pegou o troco e foi até os telefones. Ligou para Robbie, na Muscle Farm, mas foi a secretária eletrônica que atendeu.
— Ei, Robbie — disse Shadow. — Falaram que a Laura morreu. E me deixaram sair mais cedo. Estou chegando em casa.
E então, porque as pessoas cometem erros, eleja vira isso acontecer, ligou para casa e ouviu a voz de Laura.
— Oi — ela disse. — Eu não estou aqui ou não posso atender. Deixe um recado e eu ligo de volta. Tenha um bom dia.
Shadow não conseguiu deixar recado.
Sentou-se em uma cadeira de plástico perto do portão de embarque, segurava sua mochila com tanta força que machucou a mão.
Estava pensando sobre a primeira vez que tinha visto Laura. Na ocasião, nem sabia o nome dela. Era amiga de Audrey Burton. Ele estava com Robbie em um reservado do Chi-Chi, quando Laura entrou e parou mais ou menos um passo atrás de Audrey, e Shadow percebeu que estava olhando para ela. Tinha cabelos compridos e castanhos e olhos tão azuis que Shadow erroneamente pensou que usasse lentes de contato coloridas. Ela havia pedido um daiquiri de morango, e insistira para que Shadow experimentasse, e rira de satisfação quando ele o fez.
Laura adorava que os outros experimentassem o que ela experimentava.
Nesse dia, dera um beijo de boa-noite nela. Tinha gosto de daiquiri de morango, e ele nunca mais quis beijar ninguém.
Uma mulher anunciou que o embarque de seu avião estava começando, e a fileira de Shadow foi a primeira a ser chamada. Sua poltrona era bem no fundo, com um assento vago atrás dele. A chuva batia continuamente contra a parte externa do avião: imaginou criancinhas pequenas jogando punhados de ervilhas secas do céu.
Quando o avião decolou, ele adormeceu.
Shadow estava em um lugar escuro, e a coisa que olhava para ele tinha uma cabeça de búfalo, fedida e peluda, com enormes olhos úmidos. O corpo da criatura era de homem, oleoso e pegajoso.
— Mudanças estão vindo por aí — disse o búfalo, sem mover os lábios. — Há certas decisões que precisarão ser tomadas.
Chamas ardiam nas paredes úmidas da caverna.
— Onde estou? — Shadow perguntou.
— Na terra e embaixo da terra — disse o homem-búfalo. — Você está onde os esquecidos aguardam.
Os olhos dele eram bolinhas de gude negras e líquidas, e sua voz era um estrondo que parecia vir de dentro da terra. Ele cheirava a cachorro molhado.
— Acredite — disse a voz ribombante. — Se você sobreviver, precisa acreditar.
— Acreditar em quê? — perguntou Shadow. — Em que eu devo acreditar? Ele olhou para Shadow, o homem-búfalo, inchou o peito e ficou enorme, e seus olhos se encheram de fogo. Abriu sua boca de búfalo coberta de cuspe, vermelha por dentro por causa das chamas que ardiam lá dentro.
— Em ludo — rugiu o homem-búfalo.
O mundo inclinava-se e rodava, e Shadow estava no avião mais uma vez; mas a inclinação continuava. Na parte da frente do avião, uma mulher gritava com hesitação.
Relâmpagos irrompiam em clarões ofuscantes em volta do avião. O comandante anunciou nos alto-falantes que tentaria ganhar alguma altitude para fugir da tempestade.
O avião sacudia e tremia, e Shadow ficou imaginando, fria e inutilmente, se iria morrer. Resolveu que parecia possível, mas improvável. Olhava através da janela e assistia aos relâmpagos iluminarem o horizonte.
Então, cochilou mais uma vez, e sonhou que estava de volta à prisão, e que Low Key sussurrava, na fila da comida, que alguém tinha colocado a cabeça dele a prêmio, mas que Shadow não poderia descobrir quem era nem por quê. Quando acordou, estavam prestes a pousar.
Tropeçou para fora do avião, piscando os olhos para acordar.
Todos os aeroportos, ele pensou, pareciam-se muito. Onde você está não faz diferença, você está em um aeroporto: pisos de cerâmica, passarelas e banheiros, portões de embarque e bancas de revistas, e luzes fluorescentes. Esse aeroporto se parecia com um aeroporto. O problema é que esse não era o aeroporto para onde ele ia. Esse era um aeroporto grande, com gente demais e portões de embarque demais.
— Por favor, moça.
A mulher olhou para ele por cima da prancheta: — Pois não?
— Que aeroporto é esse?
Ela olhou-o, confusa, tentando definir se ele estava ou não brincando, então respondeu:
— St. Louis.
— Eu achei que esse fosse o avião pra Eagle Point.
— Era. Foi redirecionado pra cá por causa das tempestades. Não deram o aviso?
— Provavelmente. Eu dormi.
— Você tem de falar com aquele homem ali, de casaco vermelho.
O homem era quase tão alto quanto Shadow: parecia-se com o pai de uma série de TV dos anos 70. Ele digitou alguma coisa em um computador e mandou Shadow correr — correr! — até um portão de embarque, na outra ponta do terminal.
Shadow correu pelo aeroporto, mas as portas já estavam fechadas quando ele alcançou o portão de embarque. Ele viu o avião se afastar do terminal através das janelas de vidro.
A mulher no balcão de assistência ao passageiro (baixinha e parda, com uma pinta grande na lateral do nariz) consultou outra mulher e deu um telefonema ("Não, esse aí já foi. Acabaram de cancelar.") e então imprimiu outro cartão de embarque.
— Isto aqui vai levar você até lá — explicou. — Vamos ligar pro portão de embarque com antecedência pra avisar que você está chegando.
Shadow sentiu-se como uma bolinha sendo passada de mão em mão, ou uma carta sendo embaralhada. Mais uma vez correu pelo aeroporto, parando perto de onde havia desembarcado originalmente.
Um homem pequeno, no portão de embarque, pegou seu cartão:
— Estávamos esperando por você — confidenciou, rasgando o canhoto do cartão de embarque, no qual estava marcado o número da poltrona (17D). Shadow apressou-se para entrar no avião, e a porta foi fechada atrás dele.
Atravessou a primeira classe — com apenas quatro assentos, três dos quais ocupados. Um homem barbado, vestido com um temo claro e sentado ao lado do assento vago bem na frente, deu um sorriso cínico para Shadow quando ele entrou no avião, então levantou o pulso e bateu no relógio quando Shadow passou.
É isso aí, estou atrasando o seu vôo, pensou Shadow. Tomara que essa seja a menor das suas preocupações.
O avião pareceu bem cheio enquanto ele caminhava até o fundo. Na verdade estava completamente lotado, e havia uma mulher de meia-idade sentada na poltrona 17D. Shadow mostrou-lhe o canhoto do seu cartão de embarque, e ela fez o mesmo: os dois eram iguais.
— Você pode ocupar o seu assento, por favor? — pediu a comissária de bordo.
— Não — ele disse. — Acho que não vai dar.
Ela estalou a língua e checou os cartões de embarque deles, então o conduziu de volta à parte da frente do avião, e apontou para o assento vago na primeira classe:
— Parece que é o seu dia de sorte — concluiu. — Posso trazer algo pró senhor beber? Temos o tempo certinho para isso antes da decolagem. E tenho certeza de que o senhor vai precisar de um trago depois disso tudo.
— Eu quero uma cerveja, por favor — disse Shadow. — Qualquer uma que você tiver.
A comissária de bordo afastou-se.
O homem de terno claro sentado ao lado de Shadow bateu em seu relógio de pulso com a unha. Era um Rolex preto.
— Você está atrasado — disse o homem, e mostrou um enorme sorriso que não tinha nenhuma cordialidade.
— Como?
— Eu disse que você está atrasado.
A comissária de bordo entregou a Shadow um copo de cerveja.
Por um instante, ele ficou imaginando se o homem era louco, e então resolveu que ele devia estar se referindo ao avião, esperando por um último passageiro.
— Desculpe por ter segurado o vôo — ele disse, educadamente. — Você está com pressa?
O avião se afastou do terminal. A comissária de bordo voltou e levou embora a bebida de Shadow O homem de terno claro sorriu para ela e disse:
— Não se preocupe, eu seguro isso aqui firme.
E ela permitiu que ele ficasse com seu copo de Jack Daniel's, enquanto protestava, fracamente, que aquilo violava as regulamentações aéreas. ("Deixe que eu seja o juiz nesse caso, querida.")
— O tempo é certamente muito importante — disse o homem. — Mas, não. Eu só estava preocupado que você não conseguisse chegar.
— Muito gentil da sua parte.
O avião estava inquieto sobre o solo, os motores pulsando, prontos para decolar.
— Gentil o caralho — disse o homem de terno claro. — Eu tenho um serviço pra você, Shadow.
Um rugido de motores. O pequeno avião deu um tranco para a frente, jogando Shadow contra seu assento. E então eles estavam no ar, e as luzes do aeroporto iam embora atrás deles. Shadow olhou para o homem no assento ao seu lado.
Seus cabelos eram cinza-avermelhados; a barba, um pouco mais do que um punhado de pelos vermelho-acinzentados e eriçados. Um rosto marcado, quadrado, com olhos cinza-pálidos. O terno parecia caro e tinha cor de sorvete de baunilha derretido. A gravata era de seda cinza-escura, e o alfinete da gravata era uma árvore, trabalhada em prata: tronco, galhos e raízes profundas.
Ele segurou seu copo de Jack Daniel's durante a decolagem, e não derramou nenhuma gota.
— Você não vai me perguntar que tipo de serviço? — disse.
— Como é que você sabe quem eu sou? O homem deu uma risadinha.
— Ah, é a coisa mais fácil do mundo saber como as pessoas se chamam. Um pouco de raciocínio, um pouco de sorte, um pouco de memória. Pergunte que tipo de serviço.
— Não — disse Shadow.
A comissária trouxe outro copo de cerveja, e ele tomou um gole.
— Por que não?
— Estou indo pra casa. Tenho um emprego esperando por mim. Eu não quero outro serviço.
O sorriso marcado do homem não se alterou aparentemente, mas agora ele parecia surpreso, de verdade.
— Você não tem nenhum emprego esperando por você em casa — ele disse. — Você não tem nada esperando por você lá. Ao mesmo tempo, estou oferecendo um serviço perfeitamente legal; um bom dinheiro, estabilidade razoável, benefícios notáveis. Diabos, se você viver tanto assim, posso até incluir um plano de previdência privada. Você acha que gostaria de ter um desses?
Shadow falou:
— Você deve ter visto meu nome na lateral da minha mochila. O homem não disse nada.
— Seja lá quem você for — disse Shadow —, não poderia saber que eu estaria neste avião, e depois, se o meu avião não tivesse sido desviado para St. Louis, eu não estaria aqui. Meu palpite é que você é um gozador. Talvez você esteja tramando alguma. Mas acho que provavelmente vai ser melhor se a gente terminar essa conversa por aqui.
O homem deu de ombros.
Shadow pegou a revista de bordo. O aviãozinho pulava e sacolejava pelo céu, dificultando a leitura. No momento em que lia, as palavras flutuavam em sua mente como se fossem bolhas de sabão e, um instante depois, desapareciam completamente.
O homem ficou sentado silenciosamente ao lado dele, bebendo seu Jack Daniel's. Seus olhos estavam fechados.
Shadow leu a lista dos canais de música disponíveis a bordo dos vôos transatlânticos, e então olhou para o mapa-múndi com linhas vermelhas sobre o desenho, indicando as rotas da companhia aérea. Acabou de ler a revista e, com relutância, fechou o volume e guardou-o de volta no bolsão da cadeira.
O homem abriu os olhos. Havia algo de estranho em seus olhos, Shadow pensou. Um deles era de um cinza mais escuro do que o outro. Ele olhou para Shadow.
— A propósito — ele disse — sinto muito pela sua mulher, Shadow. Uma grande perda.
Foi então que Shadow quase bateu no homem. Mas preferiu respirar fundo. ("Como eu disse, não irrite as vacas nos aeroportos", disse Johnnie Larch, na sua cabeça, "ou elas vão te trazer de volta para cá antes de você dar uma cuspida".) Contou até cinco.
— Eu também senti muito — disse. O homem sacudiu a cabeça.
— Se pudesse ter sido de outro jeito — lamentou com um suspiro.
— Ela morreu em um acidente de carro — disse Shadow. — Existem jeitos piores de morrer.
O homem sacudiu a cabeça, lentamente. Por um instante, pareceu a Shadow que o homem não tinha substância; como se de repente o avião tivesse ficado mais real, ao contrário do seu vizinho.
— Shadow — ele disse —, não é piada. Não é truque. Eu posso pagar melhor do que qualquer outro emprego que você possa encontrar. Você é um ex- presidiário. Não vai ter uma fila comprida de gente se acotovelando pra contratar você.
— Senhor quem-porra-quer-que-você-seja — disse Shadow, apenas na altura suficiente para se fazer ouvir por sobre o zumbido dos motores —, não existe dinheiro bastante no mundo.
O sorriso ficou maior. Shadow se lembrou de um programa sobre chimpanzés a que tinha assistido no canal da TV pública. O programa afirmava que, quando os macacos ou os chimpanzés sorriem, é só para expor os dentes em uma careta de ódio, de agressividade ou de terror. Quando um chimpanzé sorri, é uma ameaça.
— Trabalhe pra mim. Pode haver um pequeno risco, claro, mas, se você sobreviver, vai poder fazer o que o seu coração desejar. Você poderia ser o próximo rei dos Estados Unidos. Agora — disse o homem —, quem é que vai pagar tão bem? Hein?
— Quem é você? — perguntou Shadow.
— Ah, sim. A era da informação... Mocinha, você poderia me servir outra dose de Jack Daniels? Pega leve no gelo... Não, claro, nunca houve um outro tipo de era. Informação e conhecimento: duas moedas que nunca saíram de moda.
— Eu perguntei quem é você.
— Vamos ver. Bom, considerando que hoje certamente é o meu dia, e que hoje é quarta-feira, por que você não me chama de Wednesday? Senhor Wednesday. Apesar de que, tendo em vista o clima, podia bem ser quinta, hein?
— Qual é o seu nome verdadeiro?
— Trabalhe para mim por bastante tempo, e trabalhe bem — disse o homem de terno claro —, que eu posso até contar isso pra você. Veja bem. Oferta de emprego. Pense sobre isso. Ninguém espera que você diga sim imediatamente, sem saber se vai ter que mergulhar em um tanque de piranhas ou entrar em uma cova de ursos. Passe o quanto for preciso.
Ele fechou os olhos e inclinou o assento para trás.
— Acho que não — disse Shadow. — Eu não gosto de você. Não quero trabalhar com você.
— Como eu disse — falou o homem, sem abrir os olhos — não sï apresse. Pense com calma.
O avião aterrissou com um baque, e alguns passageiros desembarcaram. Shadow olhou pela janela: era um pequeno aeroporto no meio do nada, e ainda faltavam dois pequenos aeroportos até chegar a Eagle Point. Shadow olhou para o homem de terno claro — Senhor Wednesday? Ele parecia dormir.
Impulsivamente, Shadow se levantou, agarrou a mochila, desceu do avião pela escadinha molhada e escorregadia que levava até a pista do aeroporto, e andou com um passo firme em direção às luzes do terminal. Uma chuva leve batia em seu rosto.
Antes de entrar no prédio do aeroporto, ele parou, virou-se, observou. Ninguém mais tinha desembarcado do avião. O pessoal de terra levou a escada embora, a porta se fechou, e o avião decolou. Shadow entrou e alugou um pequeno Toyota vermelho que esperava por ele no estacionamento.
Shadow desdobrou o mapa que lhe haviam dado. Esticou-o sobre o assento do passageiro. Eagle Point estava a cerca de 400 quilômetros dali.
As tempestades haviam passado, se é que haviam chegado tão longe. O ar estava frio e limpo. Nuvens passavam na frente da lua e, por um instante, Shadow não teve certeza se eram as nuvens ou a lua que se movia.
Ele dirigiu para o norte durante uma hora e meia.
Estava ficando tarde. Tinha fome e, quando percebeu o quão faminto estava, deixou a estrada na saída seguinte e entrou na cidade de Nottamun (população 1.301). Encheu o tanque no posto de gasolina Amoco e perguntou à mulher entediada na caixa registradora onde poderia arrumar algo para comer.
— No bar Jack's Crocodile — disse. — Fica a oeste, na estrada local N. — Bar Jack's Crocodile?
— Ë. Jack fala que eles dão personalidade.
Ela lhe desenhou um mapa atrás de um folheto cor-de-malva que anunciava um frango grelhado em benefício de uma menina pequena que precisava de um rim novo.
— Ele tem uns crocodilos, uma cobra, uma daquelas coisas tipo lagarto. — Uma iguana?
— É isso mesmo.
Segundo o mapa, dirigiu pela cidade, cruzou uma ponte, rodou mais alguns quilômetros e, finalmente, parou em um prédio baixo, retangular, com um luminoso de cerveja Pabst na frente.
O estacionamento estava meio vazio.
No interior, o ar estava espesso pela fumaça e tocava "Walking After Midnight" na jukebox. Shadow olhou em volta procurando os crocodilos, mas não
conseguia vê-los. Perguntou a si mesmo se a mulher no posto de gasolina não tinha tirado um sarro dele.
— O que vai ser? — perguntou o barman.
— A cerveja da casa e um hambúrguer com todos os acompanhamentos. Batata frita.
— Uma tigela de chili pra começar? É o melhor chili do Estado.
— Parece bom — disse Shadow. — Onde fica o banheiro?
O homem apontou para o canto do bar. Havia uma cabeça de jacaré empalhada, pendurada em cima da porta, por onde Shadow entrou.
Era um banheiro limpo e bem iluminado. Shadow primeiro olhou em volta; força do hábito. ("Lembre-se, Shadow, você não pode revidar quando está mijando", Low Key disse na cabeça dele, com seu tom grave de sempre.) Escolheu a cabina da esquerda. Então abriu o zíper e mijou durante um tempão, aliviado. Leu a reportagem em um recorte amarelado impresso, enquadrado na altura dos olhos. Havia uma foto de Jacke de dois jacarés.
Ouviu um resmungo educado vindo da cabina imediatamente à sua direita, apesar de não ter percebido ninguém entrando.
O homem de terno claro era maior em pé do que parecia sentado no avião ao seu lado. Tinha quase a mesma altura de Shadow, e Shadow era um homem grande. Ele estava a sua frente, olhando-o. Terminou de mijar, sacudiu as últimas gotas, e fechou o zíper.
Sorriu, como uma raposa presa em uma cerca de arame farpado. — Então — disse o senhor Wednesday —, você quer um emprego?

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