PARTE DOIS: CANÇÃO ANTIGA

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— Tomei a liberdade — disse o senhor Wednesday, lavando as mãos no banheiro masculino do bar Jack's Crocodile — de pedir minha comida, pra ser servida na sua mesa. Temos muito a discutir, apesar de tudo.
— Acho que não — falou Shadow.
Ele secou as mãos em uma toalha de papel, amassou-a e jogou-a na lata de lixo.
— Você precisa de um emprego — retrucou Wednesday. — Ninguém contrata um ex-presidiário. Vocês incomodam as pessoas.
— Eu tenho um emprego me esperando. Um emprego bom.
— Seria o trabalho na Muscle Farm?
— Talvez — disse Shadow.
— Não. Você não tem. Robbie Burton está morto. Sem ele, a Muscle Farm também está morta.
— Você é um mentiroso.
— Claro, e sou bom. O melhor que você vai conhecer na vida. Mas acho que não estou mentindo agora. Retirou do bolso um jornal dobrado e entregou-o a Shadow:
— Página sete — ele disse. — Vamos voltar pró bar. Você pode ler isso aí na mesa.
Shadow empurrou e abriu a porta para dentro do bar. O ar estava azulado de fumaça, e a jukebox tocava "Iko Iko", dos Dixie Cups. Shadow sorriu, de leve, reconhecendo a antiga canção infantil.
O barman apontou para uma mesa no canto. De um lado havia uma tigela de chili e um hambúrguer, e do outro, um bife mal passado e uma tigela de — Canção antiga e batatas fritas.
Lookatmy kingalidressedinred,Ikolhoallday,lbetyou five dollars he'll kill you dead, Jockamo-feena-nay {2}
Shadow sentou-se no seu lugar. Colocou o jornal de lado.
— Esta é a minha primeira refeição como homem livre. Vou terminar de comer antes de ler a sua página sete.
Shadow comeu seu hambúrguer. Estava melhor do que os da prisão. O chili estava bom, mas ele resolveu, depois de algumas garfadas, que não era o melhor do Estado.
Laura fazia um chili maravilhoso. Usava carne magra, feijão preto, cenouras cortadinhas, quase uma garrafa de cerveja escura e pimentas malaguetas cortadas na hora. Ela deixava o chili cozinhar durante um tempo, então adicionava vinho tinto, suco de limão e uma pitada de endro fresco e, para terminar, media e adicionava pimentas em pó. Em mais de uma ocasião Shadow tinha pedido a Laura que lhe mostrasse como fazer: ele observava cada passo, desde cortar as cebolas e jogá-las no azeite de oliva, no fundo da panela. Ele até anotou a receita, ingrediente por ingrediente — uma vez, num fim de semana que ela havia viajado, ele preparou o chili da Laura para si mesmo. O gosto ficou bom — certamente era comível, mas não era o chili da Laura.
A notícia na página sete foi a primeira descrição que Shadow leu a respeito da morte de sua mulher. Laura Moon, que segundo o artigo tinha 27 anos, e Robbie Burton, 39, estavam no carro de Robbie, na rodovia interestadual, quando desviaram em direção a um caminhão de 32 rodas. Após o choque, o carro de Robbie saiu rodopiando para o acostamento.
Equipes de resgate retiraram Robbie e Laura dos destroços. Os dois estavam mortos quando chegaram ao hospital.
Shadow fechou o jornal e, com um empurrão, fez com que deslizasse até o outro lado da mesa, em direção a Wednesday, que estava se entupindo com um bife tão sanguinolento e tão cru que parecia nunca ter sido apresentada à chama de um fogão.
— Aí está. Pegue de volta — disse Shadow.
Robbie estava dirigindo. Devia estar bêbado, apesar de o relato do jornal não falar nada sobre isso. Shadow ficou imaginando o rosto de Laura quando ela percebeu que Robbie estava bêbado demais para dirigir. A cena desdobrava-se na cabeça de Shadow, e não havia nada que pudesse fazer para que parasse:
Laura gritando para Robbie, gritando para ele encostar, então o estrondo do carro contra o caminhão, e tudo rodando, rodando...
...o carro no acostamento, vidro quebrado brilhando como gelo e diamante sob as luzes dos faróis, e sangue empossado como um monte de rubis na estrada ao lado deles. Dois corpos sendo retirados dos destroços e acomodados no acostamento.
— Então? — perguntou o senhor Wednesday. Ele havia terminado seu bife, devorara-o como um homem faminto. Agora, mastigava as batatas fritas, espetando-as com seu garfo.
— Você está certo — disse Shadow. — Eu não tenho emprego. Shadow tirou uma moeda de 25 centavos do bolso, com o lado da coroa voltado para cima. Com um peteleco, jogou-a no ar, fazendo com que oscilasse e rodopiasse, agarrou-a e, com um tapa, acomodou-a sobre as costas da mão.
— Cara ou coroa? — perguntou.
— Por quê? — retrucou Wednesday .
— Eu não quero trabalhar pra ninguém que tenha menos sorte do que eu. Cara ou coroa?
— Cara — disse o senhor Wednesday.
— Desculpa — disse Shadow, sem nem se preocupar em olhar a moeda. — Deu coroa. Eu trapaceei.
— Jogos de trapaça são os mais fáceis de ganhar — disse Wednesday, sacudindo um dedo quadrado na direção de Shadow. — Dê outra olhada.
Shadow olhou para a moeda. O lado da cara estava virado para cima.
— Devo ter feito um movimento errado — disse, confuso.
— Você só prejudica a si próprio — disse Wednesday, e sorriu. — Eu sou só um cara sortudo, muito sortudo. Então, ele olhou para cima:
— Bom, eu nunca faço movimentos errados. Mad Sweeney! Você toma um drinque com a gente?
— Southern Comfort e Coca, na verdade — disse uma voz atrás de Shadow.
— Eu vou lá falar com o barman — disse Wednesday. Ele se levantou e caminhou em direção ao bar.
— Você não vai perguntar o que vou beber? — reclamou Shadow.
— Eu já sei o que você vai beber — disse Wednesday, e logo estava em pé ao lado do bar.
Patsy Cline começou a cantar "Walking After Midnight" na jukebox. Southern Comfort e Coca sentou-se ao lado de Shadow. Ele tinha uma barba ruiva curta. Usava uma jaqueta jeans coberta com apliques de panos coloridos e, sob ela, uma camiseta branca manchada. Na camiseta lia-se:
SE VOCÊ NÃO PUDER COMER, BEBER, FUMAR OU CHEIRAR... ENTÃO, FODA-SE
Usava um boné de beisebol com a frase:
A ÚNICA MULHER QUE EU AMEI NA VIDA ERA CASADA COM OUTRO HOMEM... MINHA MÃE!
Ele abriu um maço comum de Lucky Strike com um dedão sujo, tirou um cigarro, ofereceu a Shadow. Shadow estava prestes a pegar um, automaticamente — ele não fumava, mas um cigarro é uma boa moeda de troca — quando percebeu que não estava mais na prisão. Sacudiu a cabeça.
— Você trabalha pró nosso homem, então? — perguntou o homem barbado. Ele não estava sóbrio, mas ainda não estava bêbado.
— Parece que sim — disse Shadow. — O que é que você faz? O homem barbado acendeu o cigarro.
— Eu sou um leprechaun — disse com um sorriso malicioso. Shadow não sorriu.
— É mesmo? — perguntou. — Você não deveria beber Guinness?
— Estereótipos! Você tem que aprender a pensar além dos limites — disse o homem barbado. — Tem muito mais coisa na Irlanda do que Guinness.
— Você não tem sotaque irlandês.
— Eu estou aqui há tempo demais.
— Então você veio mesmo da Irlanda?
— Já disse. Eu sou um leprechaun. A gente não vem da porra de Moscou!
— Acho que não.
Wednesday voltou para a mesa, três drinques facilmente acomodados em suas mãos que pareciam patas.
— Southern Comfort e Coca pra você, Mad Sweeney, meu homem, e um JackDaniel's pra mim. E isto é pra você, Shadow.
— O que é?
— Experimenta.
A bebida tinha uma cor dourada amarelo-tostada. Shadow deu um golinho,sentindo o gosto de uma mistura esquisita de amargo e doce na língua. Ele conseguia sentir o gosto do álcool no fundo, além de uma mistura estranha de sabores. Lembrou-lhe um pouco o destilado da prisão, fermentado em um saco de lixo com frutas podres, pão, açúcar e água, mas era mais doce, e muito mais estranho.
— Tudo bem — disse Shadow. — Eu experimentei. O que é?
— Mulso — disse Wednesday. — Vinho de mel. A bebida dos heróis". A bebida dos deuses.
Shadow deu outro golinho. É, ele percebeu que conseguia sentir o gosto do mel. Aquele era um dos gostos.
— Tem um gosto meio de água de picles — ele disse. — Vinho doce de água de picles.
— Tem gosto do mijo de um diabético bêbado — discordou Wednesday. — Eu odeio isso aí!
— Então por que você trouxe pra mim? — perguntou Shadow, sem entender. Wednesday olhou para Shadow com seus olhos desemparelhados. Shadow achou que um deles era um olho de vidro, mas não conseguia definir qual.
— Eu trouxe mulso pra você beber porque é tradicional. E, neste momento, precisamos de toda a tradição que conseguirmos para selar nosso acordo.
— Nós não fizemos acordo nenhum.
— Claro que fizemos. Você trabalha pra mim agora. Você me protege. Você me transporta de um lugar pró outro. Você leva recados. Em uma emergência, mas só em uma emergência, você machuca pessoas que precisam ser machucadas. No evento improvável da minha morte, você conduz minha vigília. E, em troca, eu vou me certificar de que as suas necessidades sejam a te ndida s.
— Ele está enrolando você — disse Mad Sweeney, esfregando a barba ruiva por fazer. — Ele é um enrolador.
— Claro que eu sou um agitador — disse Wednesday. — Por isso, preciso de alguém pra cuidar dos meus interesses.
A música na jukebox terminou, e por um instante o bar ficou quieto, todas as conversas deram uma trégua.
— Alguém me disse uma vez que esses momentos em que todo mundo cala a boca ao mesmo tempo acontecem quando passaram vinte minutos de uma hora completa ou quando faltam vinte minutos pra completar uma hora — disse Shadow.
Sweeney apontou para o relógio em cima do bar, preso nas mandíbulas enormes e indiferentes da cabeça empalhada de um jacaré. Marcava 11h20.
— Está vendo — disse Shadow. — Maldição, como eu queria saber por que isso acontece!
— Eu sei por quê — disse Wednesday. — Beba seu mulso. Shadow acabou com o resto do mulso com um longo gole:
— Deve ficar melhor com gelo — disse.
— Ou não — disse Wednesday . — Isso aí é horrível.
— Ë sim — concordou Mad Sweeney. — Me dêem licença por um instante, cavalheiros, mas eu me encontro em necessidade profunda e urgente de dar uma mijada bem longa.
Ele se levantou e saiu andando, era um homem incrivelmente alto. Shadow achou que ele tinha quase dois metros e dez.
Uma garçonete passou um pano na mesa e levou os pratos vazios. Wednesday lhe disse que trouxesse de novo a mesma coisa para todo mundo, mas agora o mulso de Shadow deveria ser com gelo.
— De qualquer jeito — disse Wednesday — é isso que eu preciso de você. — E você gostaria de saber o que eu quero? — perguntou Shadow.
— Nada me deixaria mais feliz.
A garçonete trouxe a bebida. Shadow deu um golinho no mulso com gelo. O gelo não ajudou — se é que surtia algum efeito, acentuava o amargor, e fazia com que o gosto ficasse na boca depois de o mulso ser engolido. Ainda assim, Shadow consolou-se, não tinha um gosto particularmente alcoólico. Ele não estava pronto para ficar bêbado. Ainda não.
— Tudo bem — disse Shadow. — Minha vida, que durante três anos esteve bem longe de ser a melhor do mundo, acabou de dar uma virada louca e repentina pra pior. Agora tem algumas coisas que eu preciso fazer. Eu quero ir ao enterro da Laura. Eu quero me despedir. Eu deveria me desfazer das coisas dela. Se ainda assim você precisar de mim, eu gostaria de começar ganhando 500 dólares por semana.
A quantia era um tiro no escuro. Os olhos de Wednesday não revelaram nada.
— Se nós ficarmos contentes de trabalhar juntos, em seis meses você aumenta pra 1.000 dólares por semana.
Ele fez uma pausa. Esse era o maior discurso que havia feito em anos.
— Você diz que posso precisar machucar pessoas. Bom, eu vou machucar as pessoas que tentarem machucar você. Mas não machuco gente por diversão nem por lucro. Eu não vou voltar pra prisão. Uma vez foi suficiente.
— Não, você não vai precisar fazer isso — disse Wednesday .
— Não — repetiu Shadow. — Não vou.
Ele terminou o resto do mulso. De repente, começou a se perguntar em pensamento se seria o mulso o responsável por ele soltar a língua. Mas as palavras saíam como água espirrando de um hidrante quebrado no verão, e ele não poderia contê-las mesmo se tivesse tentado.
— Eu não gosto de você, senhor Wednesday ou qualquer que seja o seu nome verdadeiro. Nós não somos amigos. Eu não sei como é que você saiu daquele avião sem eu ver, ou como você me perseguiu até aqui. Mas eu estou em um beco sem saída neste momento. Quando terminarmos nosso assunto, eu me mando. E se você me encher o saco, eu me mando também. Até lá, vou trabalhar pra você.
— Muito bem — exclamou Wednesday. — Então temos um pacto. E estamos combinados.
— Que seja — disse Shadow.
Do outro lado da sala, Mad Sweeney colocava moedas na jukebox. Wednesday cuspiu na mão e a estendeu. Shadow deu de ombros. Cuspiu na própria mão. Os dois apertaram as mãos. Wednesday começou a apertar mais forte. Shadow apertou de volta. Depois de alguns segundos, sua mão começou a doer. Wednesday segurou mais um pouquinho e, então, soltou.
— Bom — ele disse. — Bom. Muito bom. Então, um último copo da porra do mulso infeliz pra selar o nosso acordo e, daí, estaremos prontos.
— Vai ser um Southern Comfort e Coca pra mim — pediu Sweeney, afastando-se da jukebox.
A jukebox começou a tocar "Who Loves the Sun?", do Velvet Underground. Shadow achou que era uma música estranha, e bem improvável, para estar numa jukebox. Mas, e daí? Por toda a noite tinham acontecido coisas cada vez mais improváveis.
Shadow pegou da mesa a moeda que havia usado para o cara ou coroa, apreciando a sensação de pegar em uma moeda recém-cunhada, segurando-a na mão direita entre o polegar e o indicador. Fingiu passá-la para a mão esquerda com um movimento suave, enquanto a escondia casualmente na palma da mão direita. Fechou a mão esquerda sobre a moeda imaginária. Então pegou uma segunda moeda na mão direita, entre o polegar e o indicador e, quando fingia deixar a moeda cair na mão esquerda, deixou que a moeda caísse na palma da mão direita, batendo na outra que já estava lá, dando a impressão de que as duas estavam agora na mão esquerda. O tilintar confirmou a ilusão de que as duas moedas estavam nessa mão, quando na verdade estavam firmes na mão direita.
— Truques com moedas, é? — perguntou Sweeney, levantando o queixo, com os pelos da nuca eriçados. — Se vamos fazer truques com moedas, olha isso.
Ele pegou um copo vazio da mesa. Esticou a mão e pegou do ar uma moeda de ouro grande e brilhante. Deixou que caísse dentro do copo. Pegou outra moeda de ouro do ar e a jogou dentro do copo, onde tilintou de encontro à primeira. Pegou uma moeda da chama de uma vela que estava na parede, outra da barba, uma terceira da mão esquerda vazia de Shadow e deixou-as cair, uma a uma, dentro do copo. Então fechou os dedos por cima do copo e assoprou forte, e várias outras moedas de ouro caíram da mão dele para dentro do copo. Ele virou o copo de moedas pegajosas no bolso da jaqueta, e depois deu um tapinha no bolso para mostrar, sem sombra de dúvida, que estava vazio.
— Pronto — ele disse. — Aí está um truque com moeda pra você. Shadow, que havia assistido a tudo com atenção, deixou a cabeça cair para o lado:
— Eu preciso saber como foi que você fez isso.
— Eu fiz — disse Sweeney, com ares de quem estava contando um grande segredo — com elegância e estilo. Foi assim que eu fiz.
E deu uma gargalhada silenciosa, balançando-se nos saltos das botas e mostrando os dentes com falhas.
— É — disse Shadow. — Foi assim que você fez. Você precisa me ensinar. Há várias maneiras de fazer esse truque, que eu li, mas você precisa esconder as moedas na mão que estiver segurando o copo e largar cada uma para que ela passe, sem ser notada, para a mão direita.
— Parece que dá muito trabalho — retrucou Mad Sweeney. — É mais fácil pegar as moedas do ar. Wednesday disse:
— Mulso pra você, Shadow. Eu vou continuar com o senhor JackDaniels, e pró irlandês folgado...?
— Uma garrafa de cerveja, de preferência alguma coisa escura — falou Sweeney . — Folgado, é?
Ele pegou o que restava de sua bebida e levantou o copo para fazer um brinde a Wednesday:
— Que a tempestade passe por cima de nós e que nos deixe todos sãos e salvos — e, ruidosamente, colocou o copo de volta sobre a mesa.
— Um belo brinde — disse Wednesday — Mas isso não vai acontecer. Outro copo de mulso foi colocado na frente de Shadow.
— Eu tenho que beber isso?
— Acho que sim. Pra selar nosso acordo. A terceira vez é a que vale, não é?
— Merda — reclamou Shadow.
Ele engoliu o mulso em dois goles grandes. O gosto de mel com picles encheu a boca dele.
— Pronto — disse o senhor Wednesday. — Agora você é o meu homem.
— Então — perguntou Sweeney —, você quer saber como eu faço o truque?
— Quero — respondeu Shadow. — Você estava escondendo as moedas na manga?
— Nunca ficaram na minha manga.
Ele riu para si mesmo, balançando o corpo para a frente e para trás, e pulando como se fosse um vulcão desajeitado e barbudo preparando-se para entrar em erupção e ejetar seu próprio brilhantismo com prazer.
— É o truque mais simples do mundo. Eu brigo com você pela informação. Shadow sacudiu a cabeça:
— Eu passo.
— Ah, isso é ótimo — disse Sweeney para o bar inteiro. — O velho Wednesday arruma um guarda-costas e o cara tem medo até de mostrar os punhos.
— Eu não vou brigar com você — Shadow continuou a dizer. Sweeney balançava o corpo de um lado para o outro e suava. Brincou com a ponta do boné de beisebol. Então pegou uma de suas moedas do ar e a colocou sobre a mesa:
— É ouro de verdade, no caso de você estar duvidando — falou Sweeney. — Ganhando ou perdendo, e você vai perder, será sua se você brigar comigo. Um cara grande como você, quem é que ia pensar que você era uma porra de um covarde?
— Eleja disse que não vai brigar com você — falou Wednesday. — Vai embora, Mad Sweeney. Leva a sua cerveja e deixa a gente em paz.
Sweeney deu um passo para chegar mais perto de Shadow.
— Vai me chamar de folgado, é, criatura maldita? Seu macaco de sangue frio e sem coração!
Seu rosto ficou vermelho de raiva. Wednesday esticou as mãos, com as palmas para cima, pacificador:
— Que bobagem, Sweeney. Veja bem o que você diz. Sweeney olhou diretamente para ele. Então disse, com a gravidade de quem está muito bêbado:
— Você contratou um covarde. O que acha que ele faria se eu machucasse você?
Wednesday voltou-se para Shadow:
— Pra mim, chega — disse. — Resolve.
Shadow ficou cm pé e precisou olhar para cima para ver o rosto de Mad Sweeney: que altura será que aquele homem tinha?, perguntou a si mesmo.
— Você está nos incomodando — disse. — Você está bêbado. Acho que devia ir embora agora.
Um sorriso lento apareceu no rosto de Sweeney .
— Só porque você quer — retrucou.
E lançou um enorme punho na direção de Shadow. Shadow desviou para trás, mas a mão de Sweeney acertou em cheio embaixo do seu olho direito. Ele enxergou pontos de luz e sentiu dor.
E, assim, a briga começou.
Sweeney brigava sem estilo, sem ciência, sem nada além de entusiasmo pela luta em si: dava grandes golpes rápidos em todas as direções, que erravam o alvo tanto quanto acertavam-no.
Shadow brigava na defensiva, com cuidado, bloqueando os golpes de Sweeney ou evitando-os. Tomou consciência da multidão ao redor deles. Mesas foram tiradas do caminho com resmungos de protesto, abrindo espaço para que continuassem sua luta de boxe. Durante todo o tempo, Shadow percebeu os olhos de Wednesday sobre ele, e seu sorriso sem humor. Aquilo era um teste, era óbvio. Mas, que tipo de teste?
Na prisão, Shadow aprendera que existiam dois tipos de luta: brigas do tipo não se meta comigo, nas quais você causava a melhor impressão que conseguia, com bastante exibição, e as brigas particulares, brigas de verdade, que eram rápidas, duras e horríveis, e que sempre acabavam em segundos.
— Ei, Sweeney — disse Shadow. — Por que nós estamos brigando?
— Pelo prazer da luta — disse Sweeney, agora sóbrio ou, pelo menos, não mais visivelmente bêbado. — Pelo simples prazer vazio da porra da briga. Você não sente o prazer correndo nas veias, igual à seiva das plantas na primavera?
O lábio dele sangrava, assim como os nós dos dedos de Shadow.
— Então, como é que você faz aparecer aquelas moedas? — perguntou Shadow. Ele desviou para trás e se contorceu, levou um soco no ombro que deveria ter sido no rosto.
— Expliquei como eu fiz, quando a gente conversou — rosnou Sweeney — Mas ninguém é mais cego... Ai! Belo golpe!... Do que quem não ouve.
Shadow deu vários socos em Sweeney, derrubando-o por cima de uma mesa... Copos vazios e cinzeiros despedaçaram-se no chão. Shadow poderia ter acabado com ele naquela hora.
Shadow deu uma olhadela para Wednesday, e ele assentiu com a cabeça. Shadow abaixou a cabeça e olhou para Mad Sweeney:
— Terminamos? — perguntou.
Mad Sweeney hesitou, e então assentiu com a cabeça. Shadow o largou e deu vários passos para trás. Sweeney, ofegando, aprumou-se de volta a uma posição ereta.
— Nem fodendo! — gritou. — Não vai acabar até eu falar que acabou. E então ele sorriu mostrando os dentes e se jogou para a frente, dando golpes na direção de Shadow. Pisou em um cubo de gelo que tinha caído no chão e seu sorriso transformou-se em um susto de boca aberta, quando seus pés lhe fugiram e ele caiu de costas. A parte de trás da sua cabeça bateu no chão do bar, com um forte estampido.
Shadow colocou o joelho no peito de Mad Sweeney:
— Pela segunda vez, nossa briga terminou? — perguntou.
— Pode ser que sim — disse Sweeney, levantando a cabeça do chão —, porque o prazer se diluiu, como o mijo de um menininho em uma piscina em um dia de calor.
Ele cuspiu o sangue da boca, fechou os olhos e começou a roncar, roncos profundos e magníficos.
Alguém deu um tapinha nas costas de Shadow. Wednesday colocou uma garrafa de cerveja na mão dele.
Tinha um gosto bem melhor do que o mulso.
Shadow acordou estirado no banco de trás de um seda. O sol da manhã o ofuscava, e a cabeça dele doía. Sentou-se de maneira desajeitada, esfregando os olhos. Wednesday dirigia, cantarolando fora de tom. Havia um copo de papel no porta-copos. Rodavam por uma auto-estrada interestadual. O assento do passageiro estava vazio.
— Como é que você está se sentindo nesta linda manhã? — perguntou Wednesday sem se virar para trás.
— O que aconteceu com o meu carro? — perguntou Shadow. — Era a luga do.
— Mad Sweeney devolveu pra você. Fazia parte do acordo que vocês dois fecharam ontem à noite. Depois da briga.
Diálogos da noite anterior começaram a se espremer de maneira desconfortável na mente de Shadow.
— Você tem mais desse café?
O homem grande esticou a mão para baixo do assento do passageiro e passou uma garrafa fechada de água para trás.
— Tome. Você vai ficar desidratado. Por enquanto, isso aqui vai ajudar mais do que café. Vamos parar no próximo posto pra tomar um café da manhã. Você também vai precisar se limpar... Está parecendo com alguma coisa que o bode trouxe, como diz o ditado.
— Que o gato trouxe.
— Bode — disse Wednesday. — Um bode enorme, fedido e sujo, com dentes grandes.
Shadow desatarraxou a tampa da água e bebeu. Alguma coisa tilintou pesadamente no bolso da jaqueta dele. Colocou a mão no bolso e tirou uma moeda do tamanho de uma de cinquenta centavos de dólar. Era pesada e tinha uma cor amarelada, forte.
No posto de gasolina, Shadow comprou uma nécessaire, que tinha um barbeador, um sache de creme de barbear, um pente e uma escova de dentes descartável, embalada com um tubo de pasta de dente bem pequeno. Entrou no banheiro masculino e se olhou no espelho.
Tinha uma marca roxa embaixo de um dos olhos — quando a apalpou, para testar, descobriu que doía muito —, e o lábio inferior estava inchado.
Shadow lavou o rosto com o sabonete líquido do banheiro, depois passou o creme de barbear e fez a barba. Escovou os dentes. Umedeceu os cabelos e os penteou para trás. Ainda parecia maltratado.
Ficou imaginando o que Laura diria quando o visse, e então se lembrou de que Laura nunca mais diria nada, e viu seu rosto tremer no espelho, mas só por um instante.
Saiu do banheiro.
— Pareço péssimo — disse Shadow.
— Claro que sim — Wednesday concordou.
Wednesday levou alguns salgadinhos até o caixa, pagou pela comida e pela gasolina, mudando de ideia duas vezes a respeito de pagar com dinheiro ou cartão, para a irritação da mocinha que mascava chiclete atrás do balcão. Shadow observou que Wednesday ficava cada vez mais atrapalhado e não parava de se justificar. De repente, ele pareceu muito velho. A moça devolveu o dinheiro dele e debitou a compra no cartão, e então lhe entregou o recibo e pegou o dinheiro. Depois devolveu o dinheiro e pegou um cartão diferente. Wednesday estava obviamente prestes a chorar, um homem velho inutilizado pela marcha implacável do plástico no mundo moderno.
Saíram da loja quentinha do posto de gasolina e o hálito deles virou vapor no ar.
De novo na estrada: campinas de grama ressecada passavam pelos dois lados. As árvores estavam desfolhadas e pareciam mortas. De cima de um fio de telégrafo, dois pássaros pretos olhavam para eles.
— Ei, Wednesday .
— O quê?
— Pelo que eu vi, você não pagou a gasolina.
— É?
— Ela acabou pagando pelo privilégio de ter você no posto dela. Você acha que ela já percebeu?
— Nunca vai perceber.
— Então, o que você é? Um artista do contra que não vale nada? Wednesday assentiu com a cabeça.
— É — ele disse — acho que sou. Entre outras coisas. Desviou o carro para a faixa da esquerda para ultrapassar um caminhão. O céu era de um cinza uniforme e desolador.
— Vai nevar — Shadow falou.
— Vai.
— Sweeney. Ele acabou me mostrando como se faz aquele truque das moedas?
— Ah, mostrou.
— Eu não me lembro.
— Vai voltar. Foi uma noite longa.
Vários pequenos flocos de neve caíam de encontro ao pára-brisa, derretendo em segundos.
— O velório da sua mulher está sendo na funerária Wendell agora — disse Wednesday. — E, depois do almoço, vão levá-la de lá pró cemitério.
— Como é que você sabe?
— Eu liguei antes, quando você estava no banheiro. Você sabe onde é a funerária Wendell?
Shadow assentiu com a cabeça. Os flocos de neve rodopiavam e espiralavam na frente deles.
— Esta é a nossa saída — disse Shadow.
O carro saiu da rodovia interestadual e passou o aglomerado de motéis, ao norte de Eagle Point.
Três anos tinham se passado. Sim. Havia mais semáforos, fachadas de lojas estranhas. Shadow pediu a Wednesday que diminuísse quando passaram em frente à Muscle Farm. FECHADO POR TEMPO INDETERMINADO, dizia o aviso na porta, escrito à mão, DEVIDO A FALECIMENTO.
A esquerda na rua principal, passaram por um novo ateliê de tatuagem e pelo Centro de Recrutamento do Exército, depois pelo Burger King, pela farmácia Olsen, familiar e imutável, e finalmente pela fachada amarela de tijolos da funerária Wendell. Um luminoso em néon dizia FUNERÁRIA. Lápides em branco repousavam sem batismo e sem entalhamento na vitrina sob o lum inoso.
Wednesday parou no estacionamento.
— Você quer que eu entre? — perguntou. — Não exatamente.
— Que bom.
O sorriso se acendeu, sem humor.
— Tem uns negócios de que eu posso ir tratando enquanto você se despede. Eu vou reservar quartos pra nós no Motel América. Vá me encontrar lá quando terminar.
Shadow desceu do carro e observou enquanto Wednesday se afastava. Então, entrou. O corredor mal-iluminado cheirava a flores e a lustra-móveis, havia um odor muito sutil de formaldeído. No fundo, ficava a capela do velório.
Shadow percebeu que estava com a moeda de ouro na mão, como se estivesse treinando seus truques. O peso dela era tranquilizador.
O nome de sua mulher estava escrito em uma folha de papel ao lado da porta mais ao fundo do corredor. Ele entrou na capela. Shadow conhecia a maior parte das pessoas na sala: os colegas de trabalho e muitos dos amigos de Laura.
Todos o reconheceram. Ele podia perceber isso no rosto de cada um deles. Não houve sorrisos tampouco cumprimentos.
No fundo da sala havia um pequeno estrado e, sobre ele, um esquife cor- de-creme com várias coroas de flores arrumadas em sua volta: escarlates, amarelas, brancas e roxas, escuras e da cor de sangue. Deu um passo para a frente. Conseguia ver o corpo de Laura do lugar em que estava. Não queria ir mais para a frente... E não ousava ir embora.
Um homem de terno escuro — Shadow supôs que ele trabalhasse na funerária —, disse:
— Senhor? O senhor gostaria de assinar o livro de condolências'e de lembranças?
E, dizendo isso, direcionou-o a um livro com capa de couro, aberto sobre um pequeno apoio.
Ele escreveu SHADOW e a data com sua caligrafia precisa. Então, lentamente, escreveu (CACHORRINHO) do lado, descartando a ideia de andar até o fundo da sala onde estavam as pessoas, além do esquife, e a coisa dentro do esquife cor-de-creme que não era mais Laura.
Uma mulher pequena atravessou a porta e hesitou. O cabelo dela era de um vermelho cor-de-cobre, e suas roupas eram caras e muito escuras. Malditas viúvas, Shadow pensou. Ele a conhecia bem. Audrey Burton, a mulher de Robbie .
Audrey segurava um ramalhete de violetas, enrolado na base com papel alumínio. Era o tipo de coisa que uma criança faria no verão, pensou Shadow. Mas não estava na época das violetas.
Ela cruzou a sala até o esquife de Laura. Shadow a seguiu.
Laura estava deitada com os olhos fechados e os braços dobrados sobre o peito. Ela usava um tailleur azul conservador que ele não reconheceu. Os longos cabelos castanhos estavam afastados dos olhos. Era e não era Laura: o repouso dela, ele percebeu, era o que havia de artificial. Laura sempre tivera um sono a gitado.
Audrey ajeitou seu ramalhete de violetas de verão sobre o peito de Laura. Então mexeu a boca por um instante e cuspiu, forte, no rosto morto de Laura.
O cuspe pegou Laura na bochecha e começou a escorrer em direção à orelha.
Audrey já se dirigia para a porta. Shadow correu atrás dela.
— Audrey ? — ele disse.
— Shadow? Você fugiu? Ou deixaram você sair? Ele perguntou a si mesmo se ela estaria tomando calmantes. A voz dela estava distante e desinteressada.
— Me deixaram sair ontem. Sou um homem livre — disse Shadow. — Que merda foi aquela?
Ela parou no meio do corredor escuro:
— As violetas? Foram sempre as flores preferidas dela. Quando éramos meninas, costumávamos colher violetas juntas.
— Não estou falando das violetas.
— Ah, aquilo — ela disse.
Tirou algo invisível do canto da boca com a mão.
— Bom, eu achei que era óbvio.
— Não pra mim, Audrey — Não contaram pra você?
A voz dela estava calma, sem emoção.
— Sua mulher morreu com o pau do meu marido na boca, Shadow. Ele voltou para a funerária. Alguém já havia enxugado o cuspe.
O enterro foi depois do almoço — Shadow comeu no Burger King. O caixão cor-de-creme de Laura foi enterrado no pequeno cemitério sem nome que ficava depois da cidade: sem cerca, era uma campina cheia de morrinhos e coalhada de lápides de granito preto e de mármore branco.
Ele foi até lá no carro funerário da Wendell com a mãe de Laura. A senhora McCabe parecia achar que a morte de Laura era culpa de Shadow.
— Se você estivesse aqui — ela disse —, isso nunca teria acontecido. Eu não sei por que ela se casou com você. Eu disse pra ela. Mais de uma vez, eu disse. Mas elas não escutam as mães, não é?
Ela parou, olhou o rosto de Shadow mais de perto:
— Você andou brigando?
— Andei — ele respondeu.
— Bárbaro! — ela disse.
Apertou os lábios, levantou a cabeça, fazendo o queixo tremer, e olhou diretamente para a frente.
Para a surpresa de Shadow, Audrey Burton também estava no enterro, parada no fim da aglomeração. A cerimônia curta acabou, o esquife foi baixado no chão frio. As pessoas se dispersaram.
Shadow não foi embora. Ficou lá com as mãos nos bolsos, tremendo, olhando para o buraco no chão.
Sobre sua cabeça, o céu era cinza-aço, sem formas, e plano como um espelho. Continuava nevando, de forma irregular, em flocos fantasmagóricos que pareciam tropeçar no ar.
Havia algo que ele queria dizer a Laura, e estava preparado para esperar até descobrir o que era. O mundo começou a perder a luz e a cor lentamente. Os pés de Shadow estavam ficando dormentes, ao mesmo tempo em que seu rosto e suas mãos doíam de frio. Ele enfiou as mãos nos bolsos em busca de calor, e seus dedos se fecharam em volta da moeda de ouro.
Caminhou até a cova.
— Isto é pra você — disse.
Várias pás de terra haviam sido esvaziadas sobre o esquife, mas o buraco estava longe de estar cheio. Shadow atirou a moeda de ouro na cova, e então jogou mais terra no buraco, para esconder a moeda dos coveiros gananciosos. Tirou a terra das mãos e disse:
— Boa noite, Laura. E então, completou:
— Desculpa.
Virou o rosto em direção às luzes da cidade e começou a caminhar de volta para Eagle Point.
O hotel ficava a uns bons três quilômetros de distância, mas, depois de passar três anos na prisão, ele saboreava a ideia de simplesmente poder caminhar e caminhar mais, para sempre se precisasse. Ele poderia caminhar em direção ao norte e terminar no Alasca, ou dirigir-se para o sul, para o México e além. Poderia caminhar até a Patagônia, ou até a Terra do Fogo.
Um carro parou ao lado dele. O vidro da janela foi abaixado. — Quer uma carona, Shadow? - perguntou Audrey Burton.
— Não — respondeu. — Não vinda de você.
Ele continuou a caminhar. Audrey andou com o carro ao seu lado, a 5 quilômetros por hora. Flocos de neve dançavam nos fachos de luz dos faróis.
— Eu pensava que ela era a minha melhor amiga — disse Audrey. — A gente conversava todo dia. Quando Robbie e eu brigávamos, ela era sempre a primeira a saber... A gente ia pró Chi-Chi, tomar umas margaritas e falar de como os homens podiam ser ordinários. E, durante todo aquele tempo, ela estava trepando com ele pelas minhas costas.
— Oi, Shadow — ele disse. — Não se meta a besta comigo.
— Tudo bem — concordou Shadow. — Você pode me deixar no Motel América, na rodovia interestadual?
— Bate nele — disse o jovem para a pessoa que estava à esquerda de Shadow. Um soco foi desferido no plexo solar de Shadow, tirando-lhe o fôlego e fazendo com que ele se dobrasse em dois. Aprumou-se, lentamente.
— Eu disse pra não se meter a besta comigo. Isso foi se meter a besta comigo. Mantenha suas respostas curtas e objetivas, senão eu vou matar você, porra. Ou talvez não mate. Talvez eu chame umas crianças pra quebrar todos os ossos dessa porra do seu corpo. Tem 206 crianças. Então, não se mete a besta comigo.
— Entendi — disse Shadow.
As luzes do teto da limusine mudaram de cor, de roxo para azul e depois para verde e para amarelo.
— Você está trabalhando pró Wednesday — disse o jovem.
— Estou.
— Que merda ele quer? Quer dizer, o que é que ele está fazendo aqui? Ele deve ter um plano. Qual é a estratégia de jogo dele?
— Eu comecei a trabalhar pró senhor Wednesday nesta manhã. — disse Shadow. — Eu sou garoto de recados.
— Você está dizendo que não sabe?
— Estou dizendo. Não sei!
O garoto abriu a jaqueta e tirou uma cigarreira de prata de um bolso interno. Ele a abriu, e ofereceu um cigarro a Shadow:
— Você fuma?
Shadow pensou em pedir para desamarrarem suas mãos, mas achou melhor não.
— Não, obrigado — respondeu.
O cigarro parecia ter sido enrolado à mão e, quando o garoto o acendeu, com um isqueiro Zippo preto-fosco, soltou um cheiro como se alguma coisa clétrica estivesse queimando.
O garoto tragou profundamente, então prendeu a respiração. Ele deixou a fumaça escorrer pelos lábios e a inalou novamente pelas narinas. Shadow suspeitou que ele tivesse treinado aquilo na frente de um espelho durante um bom tempo antes de fazer a demonstração em público.
— Se você mentiu pra mim — disse o garoto, como se estivesse muito distante —, eu vou matar você, porra. Você sabe que vou.
— Você disse que vai.
O garoto deu mais uma tragada comprida no cigarro.
— Você disse que está hospedado no Motel América? Ele deu um tapinha na janela do motorista, atrás dele. A janela de vidro se abaixou.
— Ei. Motel América, lá na rodovia interestadual. Precisamos levar nosso c onvida do.
O motorista assentiu com a cabeça, e a janela subiu de novo.
As luzes brilhantes de fibra ótica da limusine continuavam a mudar, em ciclos, percorrendo sua gama de cores pálidas. Parecia que os olhos do garoto cintilavam também: eram verdes como a cor de um monitor de computador a ntigo.
— Diz isso pró Wednesday, cara. Diz a ele que ele é passado. Ele está esquecido. Está velho. Diz a ele que nós somos o futuro e não nos importamos nem um pouco com ele ou com alguém do tipo dele. Ele foi mandado para o lixão da história, enquanto gente como eu anda de limusine pela superestrada do futuro.
— Vou dizer — respondeu Shadow.
Ele começava a se sentir zonzo. Torceu para não ficar enjoado.
— Diz a ele que a gente reprogramou a realidade. Diz que a linguagem é um vírus, que a religião é um sistema operacional e que as orações são a mesma coisa que a porra do spam. Diz isso a ele ou eu mato você — disse o jovem do meio da fumaça, docemente.
— Entendi — falou Shadow. — Pode me deixar aqui. Eu posso fazer o resto do caminho a pé.
O jovem assentiu com a cabeça.
— Foi bom conversar com você. O fumo o havia amaciado.
— Entenda que, se a gente matar você, a gente vai deletar a sua pessoa. Sacou? Um dique e você vai ser substituído por um monte de uns e de zeros. Cancelar a operação não é uma opção.
Ele bateu na janela atrás de si:
— Ele vai descer aqui — disse.
Então, voltou-se para Shadow e apontou para o cigarro:
— Pele sintética de sapo — falou. — Você sabia que agora dá pra sintetizar bufotenina?
O carro parou, e a porta se abriu. Shadow desceu desajeitado. Suas amarras foram cortadas. Shadow virou-se. O interior do carro havia se transformado em uma nuvem de fumaça distorcida, na qual duas luzes cintilavam, agora da cor-de-cobre, como os lindos olhos de um sapo.
— Tem tudo a ver com a porra do paradigma dominante, Shadow. Nada mais importa. E, ei, sinto muito pelo que aconteceu com a sua velha.
A porta se fechou, e a limusine foi embora, silenciosamente. Shadow estava a uns 200 metros de distância do hotel, e caminhou até lá, respirando o ar frio, passando por luzes vermelhas, amarelas e azuis que anunciavam todos os tipos de fast-food que alguém possa imaginar, desde que sirvam hambúrgueres; e chegou ao Motel América sem incidentes.

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⏰ Última atualização: Apr 13 ⏰

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