Você tenta me olhar desse ângulo estranho por cima do meu ombro enquanto te carrego até a pia.
Estamos juntas desde que eu nasci e nunca te vi tão adoecida.
Sua vista, que vaga parecendo não reconhecer tanto sofrimento nos seus cenários, me encontra por alguns segundos.
Tento te enviar qualquer quantidade de conforto mas nem suas pálpebras me obedecem.
Você junta sua voz para deixar claro que está com vergonha "em dar tanto trabalho".
Chega a ser ridículo comparar meu esforço nas últimas semanas com uma infância cheia de cuidado.
Mas vai muito além da retribuição a nossa parceria.
Se fosse o corpo de outra pessoa deixado nesse estado, eu poderia ver como uma responsabilidade a função de ampará-lo.
Mas a verdade é que enquanto observo sua reflexão ao lado dos meus 28 anos prontos para enfrentar médicos e enfermeiros, lembrar de remédios e sustentar o seu peso, o que eu respiro é um enorme alívio.
Tenho me perguntado se eu já deveria morar em outra cidade, se deveria ter insistido naquela festa ou aproveitado aquela oportunidade.
Sentindo a sua bochecha apoiada na minha, sinto até uma calmaria.
De todos os lugares do mundo,
estou exatamente aonde deveria.