𝑂 𝐵𝑜𝑚𝑏𝑎𝑟𝑑𝑒𝑖𝑜

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Através da janela esbranquiçada pela neve suave que caia do lado de fora, pessoas se reuniam em volta da lareira acesa para trocar os presentes na noite de Natal.
Se sentindo imponente, um garoto se exibia no espelho com seu primeiro terno, dado pelo pai, como manda a tradição dos 16 anos, a qual diz que essa idade é a transição do garoto para o homem. Enquanto isso gritinhos eufóricos saiam da garotinha sentada no tapete desembrulhando a caixa que se mexia e emitia latidos finos enquanto sua mãe registrava esse momento em fotografias.
Essas eram coisas que eu tinha certeza de que nunca teria. Uma família.
Afinal, quem iria querer uma aberração?
Eram o que diziam as outras crianças do orfanato sobre mim.

Nasci com uma deformidade no rosto, a qual fazia meus olhos serem menores e um pouco mais separados do nariz que era achatado como o de um coala. Tirando isso e meu psicológico destruído pela chacota que sofria todos os dias, eu era uma criança normal. Diferente de meu irmão mais novo, que nasceu com uma síndrome rara que retardava o desenvolvimento de seu cérebro. Eu até o invejava, as vezes. Pelo menos assim ele não percebia a esfera de humilhação que nos cercava.
Com o passar dos anos, apesar de ainda ser muito jovem, eu não estava mais suportando viver naquele lugar. Naquela situação. Naquele corpo.
Eu sabia que ninguém nunca iria me querer. Nem como filho, nem futuramente como marido. Não havia lugar para mim do lado de fora. Então tirar minha própria vida foi uma ideia que passava constantemente em minha cabeça, e não o fazia por falta de coragem. Eu simplesmente não podia. Não podia deixar meu irmão aqui sozinho sem mim pra dividir o peso da zombaria. Eu era a única coisa que restava para ele, assim como ele também era pra mim. Assim, ao longo do tempo percebi que não precisava de quatro pessoas para se formar uma família, mas apenas duas.
Ao completar minha maioridade, veio a Segunda Grande Guerra, que obrigou todos os jovens a se alistar, inclusive a mim, já que minha condição não afetava em anda minha saúde.
Então sai do orfanato deixando meu irmão e a promessa de que quando voltasse, o adotaria e viveríamos longe de toda a maldade que caminha pela terra, afinal essa guerra só me confirmou que o mal não é um conceito abstrato, e sim feito de carne e osso.
Diariamente ao anoitecer, eu ouvia as rádios clandestinas da resistência dos países invadidos que anunciavam as cidades bombardeadas e torcia para o nome da minha não ser citada. E por fim, encerravam a programação dizendo: "Acima de tudo não perca a humanidade", isso me fazia questionar; desde quando humanidade é sinônimo de bondade?
E após mais alguns longos meses de batalha, não demorou muito para que me desligassem do serviço militar depois de fraturar o tendão de uma das pernas e receber o diagnóstico de que nunca poderia andar como antes. Encarei isso como um presente, já que agora estava livre para voltar e buscar meu irmão.
Porém chegando ao orfanato, o clima pesava como meu coração dentro do peito. Meu irmão não estava lá. Não havia ninguém. Muito menos casa. Apenas os destroços do último bombardeio.

#DoceseTravessuras

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⏰ Última atualização: Apr 25 ⏰

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