encore une fois

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meus dedos finos e delicados deslizam sobre a tua face pálida e rígida, que uma vez já foi tão macia quanto o travesseiro que em meu sono tanto me conforta. a palma da minha mão envolve a sua bochecha, acariciando a pele dura como porcelana, gélida como um cadáver. e sim, é um corpo realmente, mas não um que eu gostaria de ver todo dia, o observar de tão longe no dia mas a noite o tocar e fazer carinho como se fosse um corpo meu, um defunto de propriedade minha - uma etiqueta com o meu nome ao invés do seu no teu caixão.

eu escolhi o inferno para você porque você merece sofrer, sofrer após tudo o que uma vez me fez sentir. mas o que passei, o que você passou e o que pensamos um do outros nunca se igualaria a dor que é respirar um ar que não mesmo que o seu, um ar que ao invés de te fazer sentir vivo, seca a sua garganta, endurece as tuas narinas e faz esse momento parecer como uma gripe. nem sempre as gripes são boas, são sempre passageiras. em sua cama já se esqueceu da sensação de estar saudável, de não estar doente, mas no próximo dia, se esquece mesmo é de como tossir e espirrar.

eu contraí sua gripe por meio de um abraço, abraço profundo este que uma vez já me trouxe tanto calor e conforto. abraço este onde eu escondia o meu rosto na curvatura de seu pescoço e com meu olfato puxava para dentro de minha cabeça o teu odor. aquele odor enjoativamente doce e alegre, que já me trouxe tanta enxaqueca mas no fim do dia sempre me fazia sorrir em meu sono.

ainda agora, sobre o seu cadáver, com uma folha de papel encharcada em minha mão, não encontro calor em minhas lágrimas. é irônico porque já te ensinei a chorar para amenizar a dor, para acalmar o coração, mas agora me encontro desabando em um mar de sal, e não consigo respirar, não consigo parar de chorar. estou tremendo e fechando meus olhos com força tentando esquecer tudo isso mas meu deus, tudo o que aparece na escuridão das minhas pálpebras é você, e o que me tirava de sorriso, risada e euforia.

as pessoas crescem, e a maioria se afastam. o amor significa algo até a sua língua doer de tanto pronunciar a palavra. os beijos e abraços são trocados até que se crie uma barreira de espinhos entre ambos os corpos, consequentemente envenenando um e o outro nesse jardim de rosas venenosas. você se envenenou, e hoje se encontra morto por tuas ações tão estúpidas. uma parte de mim queria não ter evitado você nesse dia. não queria ter deixado a hipocrisia tomar conta do meu corpo por completo - muito pelo contrário, queria usar de minhas próprias frases: conversar com você antes que fosse.

te amo, queria poder dizer. mas as palavras são tão mortas como você e todos os seus sentimentos que estão enterrados no mais fundo inferno. porque na realidade, eu queria estar no seu lugar toda vez em que me pego desprevenido pensando em ti, e nas memórias passadas. meu querido, você sente saudades de mim?

traço meus dedos agora podres e cheios de calos sobre os teus braços, sobre os seus cotovelos. passo eles sobre o seu pescoço, as suas pernas, a sua cintura, o teu cabelo. ainda que você hoje esteja decomposto como um monstro, só consigo enxergar beleza em ti. eu escolhi o inferno para você por egoísmo meu, pois não queria sofrer por algo que há muito tempo afetava nós dois. talvez eu seja o inferno, talvez eu tenha te trancado aqui dentro comigo, sem imaginar no seu eterno sofrimento.

eu mereço essa culpa. isso dói muito, fere minha alma tal como minhas cicatrizes inchadas já feriram antigamente quando ainda eram abertas e doloridas. mas se essa histeria não passar, eu espero poder adormecer ao teu lado, meu doce e querido cadáver, meu amado, venerado e belo corpo.

meu doce e querido cadáver, meu amado, venerado e belo corpo. meu doce e querido cadáver, meu amado, venerado e belo corpo. meu doce e querido cadáver, meu amado, venerado e belo corpo. meu doce e querido cadáver, meu amado, venerado e belo corpo meu doce e querido cadáver, meu amado, venerado e belo corpo. meu doce e querido cadáver, meu amado, venerado e belo corpo. meu doce e querido cadáver, meu amado, venerado e belo corpo.

me livre do meu inferno, me liberte desta repetição sofrida e agonizante, me permita te amar uma última vez, me permita morrer com a obsessão queimando dentro de mim. eu te amo.

mon cher cadavre.Onde histórias criam vida. Descubra agora