Capítulo 1

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A morte era monótona.

Remus acordou um dia em um apartamento velho, pequeno e vazio. Ele não sabia de onde veio, porque estava ali, o que tinha que fazer ou para onde ir, isso se tinha algum lugar para ir também. A única certeza que ele tinha era a de que estava morto. Muito morto mesmo.

E por algum motivo, ele ainda estava no mundo dos vivos de forma translúcida, intangível e invisível para outras pessoas (ele percebeu que ninguém poderia vê-lo ou ouvi-lo quando tentou chamar alguém pela janela que tinha acabado de passar, mas essa pessoa passou por ali como se nada tivesse acontecido). Em outras palavras, ele era um fantasma.

Quando Arthur, o novo morador daquele apartamento nojento, chegou, seis meses depois de Remus ter acordado, o fantasma ficou extasiado por finalmente poder ter uma companhia, então ele não saiu do pé do garoto por dias. Ele realmente grudou igual chiclete no Arthur.

Mas Arthur sempre manteve distância, nunca reagindo às interações de Remus. E estaria tudo bem se o garoto fosse só mais um que não o visse, o problema era que ele via Remus, o fantasma percebeu isso desde que viu o rosto assustado dele ao vê-lo (uma expressão que foi rapidamente substituída pela anterior de paisagem).

E assim, tanto Remus nunca desistiu quanto Arthur começou a responder aos seus avanços.

***

O tempo era um ciclo. Remus não tinha para onde ir, não tinha o que fazer porque ele sequer era tangível e ele nunca dormia, fantasmas não sentiam cansaço. Já Arthur tinha sua própria vida para cuidar, não faltava uma aula da faculdade e nem um dia no trabalho, seu tempo livre era usado para estudar, fazer suas necessidades e, talvez, dormir.

“Talvez” porque Arthur podia ficar três dias sem fechar os olhos nem por pelo menos cinco minutos antes de seu próprio corpo cansar de depender da vontade dele e fazê-lo apagar por quase dois dias.

Remus via que Arthur não tinha paz e nem descanso, e era doloroso acompanhar os dias daquela pessoa.

Mas, ei, existe uma diferença entre sentir dor pelo estado mental de uma pessoa e sentir dor por estar com essa pessoa.

— Você já pensou em só ficar sentado na calçada lá embaixo? Você está muito pálido, tenho certeza que todo esse cansaço e essa fraqueza que você está sentindo é por falta de sol. E você não tem alergia à luz solar para fugir dela como o diabo foge da cruz.

Arthur bufou e revirou os olhos, mas ignorou tudo que seu pai disse em prol de continuar lendo uma apostila da faculdade e fazendo algumas anotações que ele achava pertinente vez ou outra.

O pai de Arthur não se importou em ter sido ignorado, apenas ficou quieto por alguns minutos enquanto mexia em alguma coisa na panela — que cheirava muito bem, para a tortura de Remus.

— Antes de eu vir te visitar, a quanto tempo você não via uma comida caseira? — Como qualquer coisa que aquele homem dizia, a pergunta foi feita calmamente, mas a entonação que ele dava fazia Remus se sentir irritado e desconfortável. Provavelmente porque apesar daquele homem agir com calma e tanta preocupação, Remus nunca viu ele ligar ou mandar uma mensagem para seu próprio filho.

Na verdade, Remus não sabia nem que Arthur tinha pai até aquele homem aparecer e Arthur chamá-lo de pai. Será que ele tem mãe também? Remus não fazia essas perguntas para Arthur mais desde que percebeu o quão tenso o garoto ficava, e como o fantasma já não é de grande ajuda, ele também não queria se tornar alguém que Arthur não sentia vontade de falar sobre.

— Algumas semanas — resmungou Arthur, o meio de suas sobrancelhas estava quase dando um nó com o tanto que ele estava forçando elas para baixo.

— Humpf, não me surpreende, você está extremamente magro também. Sua mãe sabe dessas coisas?

—…Minha mãe não tem nada a ver com a minha vida a muito tempo.

Silêncio.

Uma parte de Remus desejava uma segunda morte porque talvez assim ele não fosse mais existir no mundo dos vivos como um fantasma, o que significa que ele não estaria presenciando mais nenhuma cena como aquela.

Que coisa desconfortável.

— O almoço está pronto — anunciou o pai de Arthur, que se afastou do fogão para pegar pratos e talheres. — Tem comida suficiente para três ou até quatro dias, dependendo do quanto você come. Então guarde o dinheiro que você usa com pronta-entrega para coisas mais urgentes.

Arthur fechou os olhos e respirou fundo. Remus coçou a cabeça, preocupado que alguma briga poderia acontecer a qualquer momento.

No entanto, sem nenhuma surpresa, Arthur apenas engoliu quaisquer reclamações que tinha e se manteve indiferente até seu pai ir embora.

Quando Arthur abriu os olhos, Remus estava a um centímetro de distância dele, seus rostos colados, e o fantasma flutuava acima da mesa. Arthur quase caiu da cadeira com o susto, o que chamou a atenção daquele outro homem.

— Está tudo bem aí? — perguntou seu pai olhando para ele por cima do ombro.

Arthur acenou com a cabeça e olhou para Remus, que sorriu com divertimento ao ver o quanto aquelas íris cinzas estavam queimando. Ou melhor, já que eram cinzas, Arthur parecia prestes a lançar um raio em Remus e criar uma tempestade desastrosa em cima dele.

Remus piscou charmosamente para o outro garoto, que apertou ainda mais os lábios.

Contudo, as bochechas e orelhas pálidas de Arthur estavam levemente rosadas, o que significava que Remus tomou a decisão certa.

Rosa igual envergonhado com alguma coisa que Remus fez. Timidez.

Cinza igual algo estava muito errado.

Quando já era tarde da noite, Arthur pegou um pote de sorvete, colocou um anime na televisão e ficou abraçado ao pote no sofá, meio encolhido sob um edredom, enquanto comia o que tinha sobrado.

“Você ficou tenso o dia todo, Arthur, até uma hora atrás você parecia estar prestes a vomitar. Está tudo bem?”

Por ser um fantasma, a voz de Remus não soava presente, física, sequer real. Parecia o som de um rádio ou um eco, o som da brisa, ou até mesmo o vento ao balançar as folhas das árvores ou as cortinas.

Ele tentava não pensar nisso, na sua existência inútil como um fantasma. Remus não tinha nenhuma utilidade no mundo dos vivos, e, no entanto, agora que ele estava ali ele se recusava a sair.

Por que?

Porque aquela pessoa estava ali, viva, mas sozinha, sem ninguém para assistir animes ou brincar com ele.

E aquela pessoa acenou com a cabeça para responder silenciosamente que “sim, está tudo bem”, e nem mesmo esse simples movimento foi convincente.

Flor de Cerejeira (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora