único.

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às vezes, sinto a ausência lancinante das trivialidades mais insignificantes do mundo: o som quase imperceptível do giz-de-cera despedaçando-se contra o chão, o aroma denso da terra saturada pela chuva, o ritmo incansável das pulsações cardíacas que ecoam como um martelar constante. não estou viva, tampouco fui acolhida pela morte; estou presa no interstício, uma sombra errante, perambulando pelas esquinas do meu próprio desalento, como um cão sarnento, faminto por fragmentos de sentido, buscando nas sarjetas os resquícios de um sorriso que há muito se desvaneceu.

há, em mim, uma insurgência latente, uma fome insaciável por uma espécie de êxtase visceral, algo que percorre minhas veias com a violência de uma erupção, como um herege discorrendo sobre o divino que desconhece, como se o próprio ato de existir fosse um debate interno entre o sagrado e o profano. esse cansaço contumaz, essa saturação de meu próprio vazio, transforma-se em uma angústia sísifa, uma caminhada interminável sobre o mesmo solo árido, repetitivo, onde cada passo é uma tentativa frustrada de alcançar um destino que se recusa a ser.

sou tomada por uma dor que devora, uma dor que, se me permite, é antes existencial que física. ela me veste com uma capa de ódio, não contra o outro, mas contra o reflexo distorcido de mim mesma. sou, afinal, um vira-lata desprezado, vagando sem rumo, procurando em vão um canto escondido onde possa desmoronar em lágrimas quando a fome - física e emocional - se torna insuportável, quando a farsa do sorriso falha em disfarçar o abismo interno. anseio pela simplicidade de observar a paisagem enquanto sigo adiante, mas, ao mesmo tempo, sou incapaz de avançar, preso no ciclo perpétuo de um desejo que jamais se cumpre.

o que busco, no final, é um pequeno alívio, um instante fugaz de saciedade, como um cão faminto que, por um breve segundo, encontra uma migalha de carne no lixo. o que quero é algo tão simples, e ainda assim tão distante: encher esse vazio com algo que seja real, palpável, nem que seja apenas uma batida mais forte do meu coração, um pequeno fragmento de vida em meio à letargia.

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