Naufrágio

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Carol

Eu sempre senti algo diferente em mim que não soube nomear. Achava que era timidez, aversão, vergonha. Sempre fui a antissocial inadequada, achei que era meu único papel. Até quando fiz amigos, sinto que fiz errado. Já saí errada da nascente. Se minha própria mãe não me quis, me julgou capaz de viver sozinha, como eu poderia contestar? Por falta de opções, provei que Ester estava certa. Se não era capaz, me tornei.

Fugi. Perdi todas as relações que tinha, por mais inseguras que fossem. Natália foi a que doeu mais, sua ausência gelou meu sangue, a recordação de algo que eu poderia ter tido- nós poderiamos ter. A vida me obrigou a construir novas, superficiais e passageiras, como eu acreditei que todas as intimidades fossem. Coleguismos disfarçados de amizade. Eu sempre fui impostora. Âncora.

Quando reecontrei Natália, relembrando o decorrer dos últimos anos, senti que nós estávamos no mesmo barco. Duas garotas sozinhas. Carol sem família e com poucos amigos. Natália sem amigos e com pouca família. Duas correntes que se cruzaram nas sua partes mais profundas, destinadas à mesma deságua. Desde sempre, fomos mais próximas do que os outros, mas eu pensava que era por sermos tão opostas e, ainda assim, sentirmos as mesmas coisas. Ela era a Doida Mal-Compreendida e eu a Estranha Mal-Relacionada. Carregamos nossos títulos com proeza por mais de duas décadas, exceto quando estamos sozinhas. Nesses momentos podemos ser tudo que o resto do mundo não nos deu a chance de tentar. Natália me ensinou o que era uma conexão real, se fez inesquecível na minha vida sem que eu notasse. Uma solidão só nossa. 

Sua declaração foi uma surpresa tão grande para mim que eu não soube reagir. Finalmente reconstruímos nossa amizade, mais forte do que nunca, e ela me mostra um novo caminho que eu jamais ousei atravessar. Minha estupidez a afastou, me tirou a relação mais verdadeira que eu tive. De novo.

Todos esses dias longe dela foram torturantes, eu senti ela escorrendo pelos meus dedos. A maré subiu tão depressa, eu não pude acompanhar. Naufraguei nos meus receios. Dizem que a distância enriquece a paixão, deve ser por isso que não consigo parar de pensar nela e em como eu errei.

Natália se infiltrou em minha vida de um modo irreparável. Me tirou a segurança da terra firme e me atraiu até sua margem, eu não poderia fugir nem se eu quisesse. Já estou inundada. 

Submersa. Sem fôlego.

Todos os abraços, toques por debaixo das mesas, palavras, cafés, comentários feitos só pra mim no meio de todos nossos amigos, tudo. Ela criou um mundo só nosso para navegar, me explorar por todos os cantos. Não acredito que incompreendi um amor tão autêntico como o dela- o nosso. Não entendo como me recusei esse desejo pulcro, que me atormentou em tantas noites. 

Minha aflição me levou até a porta da sua casa o mais rápido possível. Quando me viu, ela imediatamente recuou.

- Me desculpa, Carol. Eu já te disse que eu não posso ser só sua amiga. Eu não posso te dar a amizade que você quer. - Ela tenta fugir de mim, me mandar embora. Cada passo desesperado que ela dá para trás é uma batida que meu coração pula. Mesmo estando na minha frente, ela parece tão distante, à mil léguas submarinas. Me diz que eu não te perdi para sempre?

- Não, não é isso. Só me escuta, por favor. - Mas ela não me deixa terminar, já está falando por cima de mim. Ela, mais uma vez, é mais rápida que eu. Ela sempre foi mais que eu. Mais aberta, mais intensa, mais ágil, mais reluzente, mais corajosa, mais sincera. Natália sempre foi tanto de todas as coisas boas. 

- Para, Carol. PARA! Eu já falei. Eu não consigo fazer isso. Eu não sirvo para amar, eu sempre erro, acabo dependendo demais dos outros igual eu dependia do Bruno, me jogando em lugares que não me cabem. Eu já sei de tudo que você vai falar, mas eu não quero ouvir. Eu cansei, para de insistir nessa relação. Não posso mais te ter na minha vida se não for por completo. Eu não sei te amar do jeito que você quer.

Ela tentou lutar, mas algumas lágrimas já estavam escorrendo em seu rosto vermelho. Eu precisei respirar fundo, também em prantos pelo meu próprio medo de ser tarde demais. A mesma culpa que marejou meus olhos me fez questionar: eu te causei tudo isso?

- Não, Natália. - Finalmente ela olhou nos meus olhos, pela primeira vez em uma semana. Minha voz pintada de choro tremia no ar, baixa, porém decidida. - Não fala isso. Eu sei que você me ama do jeito exato que eu preciso. Na verdade, ninguém sabe amar melhor do que você. E, aparentemente, nem eu. Me desculpa. Eu demorei tanto para perceber isso. - Eu me aproximei com cautela, me senti tentando abraçar um animal ferido, acanhado.

Nunca vi um tom de castanho mais lindo que o da esperança oscilando nos seus olhos. 

Olhos grandes, seu fulgor parecia o reflexo da lua balançando sobre um mar calmo. Quando tomei coragem e sussurrei minhas últimas palavras racionais. - Eu te amo, Natália, mais do que já sonhei ser capaz de amar alguém. - Deixei que meu beijo falasse o resto. Me desculpe pelo atraso.

Secamos nossas faces, borradas com o choque de tudo que é novo e belo. Eu tentei não piscar para não perder um segundo do que estava vendo. Maravilhada. Apaixonada. Entregue. Aliviada. Feliz. Quente. Sedenta. Natália me fez sentir tudo que eu tanto neguei admitir. Meu sorriso não cabia no meu semblante, o fascínio dela não cabia nas próprias feições. Nossas emoções eram grandes demais, vazavam para o corpo todo. Nossos lábios quentes e risonhos não se contiam, precisavam passear pelos contornos uma da outra. Me desculpe pelo atraso.

Ela me agarrou como se eu fosse me desfazer, me levou para o seu quarto e me mostrou o que eu perdi por tanto tempo. Seus dedos me sentiram gotejar. Me afundei nela e ela em mim. Me desculpe pelo atraso. Sua língua na minha pele tinha o mesmo efeito que o sol quente na areia da praia, queimando por onde pudesse tocar. Se eu estava congelada, derreti sob suas digitais. Sua saliva era o único líquido sagrado da vida. Eu bebi e saboreei de todos os seus licores. Eu te amo, Natália. Me desculpe pelo atraso. Não tenho mais motivos para ter pressa, tudo que eu precisava ela me deu. Ela respondeu todas as minhas perguntas, deixando suas soluções marcadas em cada canto do meu corpo. Seu íntimo molhado se misturou com o meu, em uma onda de querer eufórica. Foi assim que nos recompensamos por todas as vezes que aguamos uma pela outra em silêncio. Cada som era um ilha nova, cada beijo, um oceano. Eu te amo, Natália. No fim da noite, meu queixo brilhava com seu prazer e meu peito ardia com seus toques.

- Eu te amo, Natália.

- Eu te amo, Carol.

Como pude demorar tanto tempo para mergulhar?


Natália não sabe nadarOnde histórias criam vida. Descubra agora