"Equilíbrio"

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Faz alguns anos que um vírus se espalhou por todo o mundo, que sucumbiu para um apocalipse, não tinha um jeito melhor de dizer isso... Os cientistas estavam o estudando, e por um descuido, ele se espalhou. Diferente do que está pensando, e do que víamos nas obras de ficção, este microorganismo funciona de maneira diferente, ainda de forma desprezível. Ao invés de zumbis, burros, lerdos, ganhamos animais burros e letais, e animais inteligentes e mais mortais ainda. É muita coisa para digerir, mas com o tempo você aprende e engole a seco. Acho que a pior parte não é nem a história de como aconteceu, mas a de como estamos no atual momento. Lutando para voltarmos vivos para casa, pro nosso lar, todos os dias. Estamos jovens, a maioria de nós, então disseram que somos os melhores para estar aqui fora.
Estou com dezesseis anos, e apesar da idade, tenho um ótimo cargo na base por ser filha de um ex-líder, ainda precisam da minha opinião em decisões, representando meu pai e o que ele faria. Dizem que não é tão importante, mas eu discordo! Pelo menos eu quero discordar... Nesse momento, estou em uma missão de dois dias distante da base. Para mapear o território e conseguir suprimentos extras, simples. Estamos próximos a um bunker abandonado, um tanto despedaçado, que pode servir para nos esconder caso necessário. Ele é um ponto conhecido pelos sobreviventes de nossa base, então já foi averiguado várias e várias vezes, não é a primeira vez que meu grupo vem pra cá. O jipe está estacionado próximo às mochilas com suprimentos que achamos e que trouxemos, sem falar da fogueira apagada no meio do acampamento. A floresta é densa, seus pinheiros altos e robustos deixam o ambiente ainda mais mórbido, tivemos sorte de encontrar essa espécie de clareira em buscas passadas, mas nada assusta mais do que aquelas coisas no escuro... Ah, você não sabe com o que exatamente estamos lidando ainda. Já chegamos lá.
Eu olho minha amiga, Alice, mexendo em sua bolsa médica, agachada no chão.
ーÉ a segunda vez que confere essa bolsa!
ーEu sempre tenho a impressão de ter perdido algo.
ーTalvez pense isso exatamente quando não esquece nada.
Ela sorri enquanto fecha a bolsa. O nome dela é Alice, minha amiga de infância e uma boa médica, cabelos pretos, sempre presos e usa óculos ovais. Faz curativos como ninguém, é um suporte e tanto, algo que compensa a inexperiência com armas. Sempre aparenta estar mais animada fora da base, independente dos perigos que essa floresta esconde. Mas diz que era impressão minha. Questionei:
ーAcha que eles vão voltar logo?
ーCom tanto que não voltem gritando que foram atacados ou algo do tipo. Acho que podem demorar, né?
Ergui uma das sobrancelhas.
ーNão quer ir pra casa?
ーA poxa, fora da base não é tão ruim. O ar daqui é bem melhor!
Ela reforçou a palavra "base". Alice nunca chamou a base de casa. Já reparei, mas nunca perguntei o por quê. Apesar de saber a razão. Ela era (e ainda é), claramente deslocada de todos, exceto a mim. Ela já me disse isso, não tão direta com essas palavras. Mas não vou discutir com ela sobre isso...
ーMas por que não considera lá sua casa?
ーOutro dia falamos disso.
Ela pareceu desconfortável.
ーLá tem tudo que nós precisamos.
ーTá mas eu não acho que lá seja minha casa.
Cerrei o cenho irritada.
ーComo não!?
Antes que dissesse outra coisa, um garoto ferido apoiado nos braços de uma garota, ambos da nossa equipe de busca, se aproximaram rapidamente. Gritando. Alice fecha os olhos, numa expressão de arrependimento, sussurrando "Droga... ".
ーMas que porra, Astrid!?
ーANTROCANS! U-Um grupo nos atacou! O restante ficou pra atrasa-los, mas o Ian acabou ferido!
A garota encostou o ruivo na roda do jipe, enquanto Alice rapidamente analisava suas feridas. Antros, isso mesmo. Os desprezíveis Antrocannibalis, antro de humano cannibalis que não existe exatamente, só criamos pra ficar sonoro e remeter a canibal (nota do autor: anthropophagi ficaria horrível)... Esses filhos da puta são um dos problemas que temos que enfrentar nesse novo mundo. Além dos zoocannibalis, mesmo esquema, mas zoo para animal. Ouso dizer que os Zoocans possuem mais semelhança com os famigerados mortos-vivos que conhecíamos. Ambos tem o gosto por carne humana, sendo assim, somos alvo dessas caçadas muito bem articuladas. Para a nossa sorte, Zoocans são burros, apesar de violentos e andarem em bandos, ignorarem tiros por causa da insanidade, eles parecem zumbis mesmo, e acabam morrendo numa perseguição longa pelas balas. Sendo assim, mire na cabeça. Para o nosso azar, Antrocans que estavam vindo. Habilidosos, inteligentes, e violentos. Parecem um pouco mais com humanos, exceto por seus olhos chamativos que usam pra nos assustar e se comunicar, já vi alguns com cabelo colorido, genética talvez, e mesmo sendo semelhantes a nós, não falam. Já disse que eles são desprezíveis?
ーPrecisamos esperar o restante! Ligue o carro!
Berrei. Astrid sem pensar duas vezes pulou pra dentro mexendo nas marchas e na chave. Enquanto eu forçava a visão para dentro da floresta, para tentar avista-los se aproximando, e jogando as coisas pra mala de um lado, enquanto Alice colocou Ian do outro. Estava perdendo sangue demais. Faltavam algumas bolsas somente de suprimentos para colocar na mala, quando outros dois da equipe apareceram, pálidos e cansados.
ーCorre, porra! Corre!
Pularam pra dentro da caçamba, e eu fui em seguida. Puxei minha arma, uma M4, e eles apareceram. Um de casaco vermelho, e máscara, semelhante a uma de gás, sem as partes respiratórias, com vidro nos olhos, que tapava seu rosto todo. O outro também estava mascarado, também de gás, mas só cobrindo meio rosto. Porém, usava uma touca verde. Foram os detalhes mais claros que reparei na hora, e o pior... Eu já tinha visto eles uma vez, eles são perigosos. Antes de atirar. Astrid pisou no acelerador enquanto íamos nos afastando das figuras. A motorista estava de olhos arregalados e qualquer erro no volante custaria a vida de todos nós. Eu virei ao ouvir a pergunta da médica.
ーCadê o resto?
Alice pergunta. Um dos assustados, ofegantes, arregalou os olhos negando com a cabeça. Não havia resto, perdemos dois dos nossos... A raiva tomou conta de mim, eu queria desabar ali, mas não podia. Eram mortes na minha conta, não é a melhor coisa para acontecer. Minha respiração falha, e começo a ouvir o própio coração. Eu gritei. Um grito que foi rasgando minha garganta.
ーDESGRAÇADOS!
A dor por mais perdas acertou em cheio mais uma vez, mesmo que fosse comum, é difícil aceitar que nós tenhamos que passar por isso repetidas vezes, nossos amigos e colegas, morrendo sem que a gente possa fazer nada. Estava esperando que os Antros ouvissem, se entenderiam ou não, estava fora de questão. Parei os tiros, por não ver movimentação na mata e zero sinais daqueles dois malditos. Mas ainda tinha a impressão de estarmos sendo seguidos, eles são ardilosos demais (Seja lá o que isso for). Todos no jipe estavam nervosos, com exceção de Alice, pois precisava manter a calma enquanto estancava o sangramento dos ferimentos do ruivo. Tudo muito silencioso, apenas com o barulho do motor sumindo aos poucos, Astrid estava desacelerando.
ーDespistamos eles...?
Um silêncio mortal, e angustiante. Só escutava a batida do meu coração, e se eu me esforçasse, parecia que escutaria a dos outros também. A brisa lisa vinda do alto da floresta bateu em meus cabelos. Até que alguém pula na minha frente, se segurando nos ferros da caçamba e agarrando o braço da arma. Era o encapuzado vermelho. A maioria berrou, aquela coisa segurou o braço que estava com a arma, e quando me encarou, o brilho mínimo do sol que passava pelos pinheiros, adentrando a floresta, mostrou seus olhos pelo vidro da máscara. Minhas sobrancelhas cerradas tremiam, e minha mandíbula estava contraída. A pressão no braço aumentou, como se a pele fosse rasgar, mas eu não conseguia pensar e me mover. Parecia hipnotizada. Eu já havia visto esse desgraçado, mas não tão perto. Ele é mais assustador do que eu pensava, eu escutei sua respiração abafada pela máscara. A garota no volante disse desesperada vendo tudo pelo retrovisor, acelerando mais uma vez.
ーEMPURRA! EMPURRA!
ーHana!
Alice berra chutando um sinalizador pro meu pé. Empurrei a criatura para longe. Ela escorregou pelo chão de terra, mas caiu que nem um gato de um lugar alto. Em pé, olhando pra mim. Por um momento tudo ficou lento. Meu braço latejava, e eu conseguia ouvir minha respiração, com a voz abafada dos outros. Me senti zonza, desnorteada, um zunido aumentava no meu ouvido esquerdo. Até que eu balançasse a cabeça, escutando me chamarem outra vez.
ーHANA!
Peguei o sinalizador e atirei pra cima. Para avisar aos porteiros que era uma emergência, e abrirem os portões da base de imediato. Quando olhei para frente, lá estava. Os grandes portões de barras de ferro, se abrindo para nós. Astrid não pensou duas vezes, e pisou fundo no acelerador. Assim que entramos, o carro derrapou, ficando de lado para os portões, que aos poucos se fechavam. Encarei floresta adentro, forçando a visão. Eles ainda estavam lá, eu conseguia sentir. Escondidos nos observando. Sentia o peso da minha respiração novamente, e seu som, com o tremendo silêncio imaginário a minha volta. Estava com raiva, ansiedade e... dúvidas. Duas mortes, dores no braço, extrema confusão. Cerrei os punhos, quase furando as mãos com as unhas.
Membros da base correram para socorrer o garoto quando olhei pro jipe, a médica havia feito um bom trabalho, mas pareceram ter ignorado como se fosse muito urgente. Alice fechou a cara, e veio na minha direção, com uma cara de como se já soubesse o que eu estava pensando.
ーNão é culpa sua, você sabe.
ーDroga, Lice... eles morreram. Aqueles desgraçados comedores de gente...
Voltei a encarar a floresta. A morena pergunta, olhando-a também.
ーAcha que estão nos observando?
O vento bate em nós duas, bagunçando os fios.
ー... Sinceramente não sei. Mas não quero saber. Se eu tiver oportunidade juro que-
Alice me cortou.
ーVocê sempre diz isso. Se acalma por agora, sim?
Suspirei.
ーTanto faz. Só estou pensando como contar ao Horowitzz sobre isso tudo no relatório.
Ela fita a mim e depois a floresta novamente.
ーEra bom cortar algumas coisas.
Afirmo com a cabeça.
ーÉ...Acho que nunca senti tanta angústia na vida...
ーNossa verdade! Você entrou em contato com aquele encapuzado... Viu alguma coisa?
Eu me calei por um instante. Aquele flash de memória dos olhos verdes do Antrocan, mórbidos apenas. Senti um frio subindo pela espinha, arrepiando.
ーAquilo não é humano.

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