II

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— NÃO! Você não pode abrir mão de um acompanhamento psiquiátrico, Sel! — Dilan se exaltava quando Selene escolhia as melhores maçãs do cesto na feira de rua.
— Calma, Dilan! Não é definitivo... Eu só acho que não sinto a necessidade desse tipo cuidado agora, sabe? — Selene falava com ar de riso, mas por dentro se irritava com a constante insistência do melhor amigo. Desde o ocorrido do anel, que continuava em seu dedo, e a luz estranha no quintal, ele mandava quase diariamente recomendações de médicos para acompanhamento pós-traumático. De acordo com a opinião de Dilan, após a morte dos pais, Selene estava alucinando com "coisas" cósmicas. Selene insistia que havia sido um ocorrido único, que nunca teria passado por aquilo outras vezes, e garantiu bater o ponto toda semana na psicóloga. Para Dilan o fenômeno ter sido vivido por Selene no dia de seu aniversário logo após confeccionar o anel da Lua significava muito mais do que parecia, talvez até que a amiga pudesse estar mesmo ficando louca.
— Olha, eu garanto que sou a pessoa que mais te amo nesse mundo, Sel. Eu cresci com você! Poxa! Eu comia as broas de milho da tia Lilian todo dia! — Ouvir o nome da mãe atingiu diretamente o emocional de Selene, marejando levemente seus olhos. — Você ouviu o que eu disse? — Dilan vira o rosto da amiga com a ponta dos dedos levantando seu queixo e a fazendo olhar em seus olhos. Algo em Dilan apontava em seu coração que Selene tinha uma paixão secreta por ele desde a adolescência, e isso, de fato, não era de forma alguma mentira. O coração de Dilan batia mais forte por Selene, fato inegável, mas uma parte corrompida de seu caráter, gostava de usar estrategicamente os sentimentos dela para convencê-la de que ele estava correto quando necessário.
— Ouvi sim. Vou fazer o que você disse, ok? Agora me ajude com as batatas. — Selene entrega a sacola repleta de batatas e sai em busca das tangerinas. Dilan está com uma expressão pensativa, seus cabelos castanhos cobrem as orelhas e os óculos escuros de tratamento para fotossensibilidade pendem sobre o nariz, sua pele cheira levemente a protetor solar.
— Annn, Sel? Eu sei que já te perguntei uma, duas vezes, mas você realmente não viu ninguém no seu jardim? No dia do lance da luz... — Selene revira os olhos com o questionamento, e agradece a moça da barraca de laranjas que entrega seu troco com um sorriso.
— Droga, Dilan! Uma, duas vezes, uma ova! Eu já estou me irritando com isso. Nossa amizade sempre foi incrível. Juro, você é minha âncora nessa situação de merda, mas está se tornando um grande estresse do caramba! Por que não vai se preocupar em tingir esse cabelo de novo? Olha o tamanho da tua raiz! — Selene solta uma piscadela e ri, se afastando enquanto mastiga folhas frescas de hortelã. Hoje ela iria fazer suco de abacaxi com as folhinhas, estava feliz com isso, não teria Dilan-chato-e-bobão que atrapalhasse seus planos alegres. Dilan cobre a raiz dos cabelos com as mãos e em seguida arruma os óculos.
— Sei lá, vai que era uma pegadinha de algum aluno seu, ou sei lá... UM TARADO! Quem sabe, Sel? Já te disse pra vir morar mais perto de mim. — Ele a segura pelo braço, Selene o encara, e caramba! Como ele conseguia ser tão lindo e tão irritante ao mesmo tempo. Dilan sempre cuidava de Selene, desde pequena. Desde o dia em que ele chegou na casa dos Santiago, havia sido adotado pela família vizinha de sua casa.

***

Era um dia calorento de verão quando o carro da família Santiago parou na frente da garagem de sua casa. Selene tinha 8 anos, ela pulava e se refrescava com a mangueira, acompanhada da fiel Laika, uma cadelinha vira-lata de olhinhos encantadores, que abanava o rabinho contente. Seu pai lavava o carro e sua mãe estava na cozinha, preparando algo muito cheiroso com perfume de melaço. Do carro desceram o Sr. e a Sra. Santiago, seguidos por um garotinho raquítico e pálido como a neblina de um dia de inverno, seu cabelo era preto e pendia nos ombros, usava óculos escuros de lentes grossas e suas roupas era de um tom cinza que só piorava sua aparência doentia. Selene, em sua inocência infantil encarava a situação, a mangueira esguichando água estava pendurada em suas mãos, assistindo com curiosidade a aparição do recém-chegado Dilan. Ele a olhou e caminhou desajeitado em sua direção, arrumando os óculos no nariz, parando na frente da garota, próximo o suficiente para a água da mangueira pingar em suas botinhas azul escuro.


— Puuuxa, você é muuuito estranho! — Selene diz apertando os olhinhos, seu pai olha surpreso com o comentário irreverente da filha e confere se os vizinhos se chatearam. Mas a fala de Selene apenas arranca uma risada sincera do pequeno Dilan. Ela ri junto e a expressão de todos os adultos relaxam ao mesmo tempo, acompanhando os pequenos com risos sem graça.

Naquele dia, Selene convidou Dilan para brincar com a mangueira, ele recusou. Ela sugeriu brincar com os blocos de madeira, ele também recusou. No outro dia, Selene criou novas brincadeiras, trouxe brinquedos para o jardim e até fantasiou Laika de abelha para brincarem de colmeia, mas Dilan insistia em recusar todas as sugestões. Ele apenas sentava na soleira da porta de casa, observando distante Selene se divertindo com a cadelinha e sua vasta imaginação. Às vezes Dilan estava tão imerso nas brincadeiras, que opinava sobre como ela deveria fazer a comidinha de mentira, ou como deveria agir sendo a detetive de um caso especial. Selene se alegrava com as intromissões tímidas de Dilan, e tinha certeza que um dia ele se uniria a ela de fato.


Numa sexta-feira, Selene voltava da escola, sentada no banquinho da scooter de seu pai, ela contava sobre a aula de ciências e como era sensacional as partes sobre o espaço. Seu pai ria, e acrescentava informações curiosas aos trechos ansiosos de Selene. Ela comia batatinhas onduladas de um saco vermelho e azul, lambendo as pontas salgadas dos dedinhos, quando viu Dilan sentado no gramado da sua casa, com bonecos de ação em suas mãos e colo, esperando tranquilamente. Selene desceu correndo e foi ao encontro do vizinho. Ela esperou por 3 meses e finalmente lá estava ele, pronto para se divertir com ela.

— Oi? Esses são meus primeiros brinquedos, ganhei hoje de manhã. Finalmente posso brincar com você, né? — Ele sorria meio torto, vestia roupas engraçadas e caminhava estranho, mas algo nele encantava Selene. — Ah! Meu nome é Dilan! — Selene riu com o pensamento de que o nome era a única coisa "normal" naquele garoto. Ela se sentou, disse seu nome, e eles brincaram com os bonecos de heróis japoneses por toda a tarde.

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⏰ Última atualização: May 22, 2024 ⏰

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