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— Temo que se continuar assim abrirá buracos em minha mesa — Severus reclamou, retornando com as xícaras de chá.
— Desculpe.
— Tomei a liberdade de trocar por camomila — informou incisivo, referindo-se ao habitual chá de hortelã do outro. — Já está adoçado.
Ele colocou pires e xícara sobre a madeira e os deslizou até o homem inquieto, observando os olhos ansiosos alcançarem a janela com vista para o jardim florido, enquanto as mãos nervosas se esfregavam contra a calça de alfaiataria e os lábios rosados mantinham-se comprimidos.
— Potter, está me deixando preocupado.
Só então Harry se obrigou a olhar nos olhos de seu antigo professor, sentindo um arrepio percorrer por toda a sua espinha. Quase se manteve em silêncio novamente, demorando alguns pares de segundo para falar, incitado pelo olhar intenso de Snape sobre si.
— Descu-
— Se pedir desculpas mais uma vez, eu o expulso daqui — o mais velho ameaçou, já farto dos inúmeros pedidos de desculpa feitos desde que O-Menino-Que-Sobreviveu batera em sua porta. — Por Merlin, Harry, o que diabos aconteceu?
Harry Potter havia batido em sua porta logo que Severus chegou da Feira de Ingredientes Especiais e Exóticos para Poções, naquele sábado ensolarado, perto das dez horas da manhã. Recebido com um cenho franzido em confusão, ele mal pôde pronunciar uma frase sem parecer o garotinho atrapalhado que um dia fora — e o pior: cumprimentando o pocionista com um baixo e trêmulo pedido de desculpas.
Snape obviamente o deixou entrar, preocupado. Desde o fim da guerra e sua esplendorosa segunda chance, ele começara a… aturar o grifinório. Claro, após uma quantia vergonhosa de tentativas e incansável insistência. Porém, o teimoso e inconsequente Harry Potter conseguiu, por fim, se aproximar do homem a quem sentia dever sua vida.
— Eu… — sacudindo os cachos em negativa, ele engoliu em seco.
Prestes a falar, fora mais uma vez interrompido por um Severus alarmado, cercado por inúmeros pensamentos rápidos demais.
— Isso… Isso tem a ver com ele, Potter? — o garoto demorou um pouco para entender, fazendo-o somente ao perceber os olhos negros ligeiramente arregalados.
— O quê? Voldemort? Não! — ele se apressou; a negativa permitindo que um suspiro de alívio fugisse dos lábios finos de Snape.
— Certo — impaciente, buscou mais um gole do seu chá e respirou fundo, voltando a falar com calma. — Pode fazer o favor de dizer de uma vez qual o problema, Harry?
— Tudo bem — limpou a garganta. — Eu… Eu tenho algo que eu preciso dizer — começou, percebendo que não havia sido tão difícil assim.
Antes de continuar, porém, resolveu tomar uma quantia generosa de seu chá, imediatamente fazendo uma careta pelo sabor. Ele não gostava de chás, no geral. Entretanto, gostava de acompanhar Snape naquelas conversas de forma digna, também com uma xícara de chá. Consequentemente, havia encontrado um que tolerava: o de hortelã.
— Algo sobre… mim.
Reunindo toda compreensão que poderia existir em si, Severus resolveu que precisava interferir.
— Harry — o chamou, com um tom cauteloso —, você não me deve nenhuma satisfação. Mas somos… — a palavra dançou em sua língua, estranha. — amigos. Você pode co-
— Esse é o problema, Severus — foi a vez dele interromper, evitando olhar para o homem.
— Eu não entendo.
— Droga, eu tô tentando sair do armário, Snape. Eu sou gay. E… O que foi?
Potter parou repentinamente quando viu a sombra de um sorriso nos lábios do terrível Professor Snape. Entre tantas possibilidades, sabia que era justamente a rejeição aquela que mais o machucaria.
E aquilo parecia… deboche?
— Me desculpe — foi difícil não rir. —, mas desde quando isso é alguma novidade?
— O quê?
O grifinório olhou para ele com assombro e confusão. Como diabos Snape poderia saber? Estava tão explícito assim?
— O que…
— Você e Neville, Potter, em algum corredor qualquer daquela bendita escola.
— Merlin… — as bochechas dele coraram violentamente e os olhos verdes pareciam maiores agora, enquanto, aos poucos, parecia se recordar daquele incidente. — Eu… acho que preferi apagar da minha mente.
Aquele não fora o seu primeiro “beijo gay” ideal. Havia sido… inesperado. E unilateral, na verdade. O beijo não havia sido bom e, além do mais, Harry fora pego de surpresa. A experiência um tanto quanto traumática — seja por um Longbottom que não sabia o que estava fazendo, ou por um morcego rabugento que havia pego os garotos no flagra — havia sido esquecida em algum buraco qualquer de sua consciência, e, com isso, Harry nem mesmo se recordava que havia alguém, fora os seus dois melhores amigos, que sabia minimamente sobre a sua orientação sexual.
— Precisa de alguns minutos para processar ou já pretende me dizer que o casório está marcado?
— Do que você-
— Isso é, no mínimo, frustrante — ele bufou, tentando não transparecer tanto amargor em sua voz. — Eu esperava que meu ex-aluno preferido viesse me dar a feliz notícia. Ou pelo menos o acom-
— Severus! Por… por Merlin, Godric, Salazar, ou seja quem for, cala a boca! — ele quase gritou, derrubando um pouco de seu chá ao se levantar abruptamente.
E então aconteceu, novamente.
Lembrando-o de quando obrigara Snape a ouvi-lo na saída do Ministério, após o julgamento mais aguardado pelo Mundo Bruxo, Harry havia deixado seu ex-professor mais uma vez sem palavras, quase estupefato.
— E-eu não acredito que você está com ciúmes do Neville! — surpreendentemente, ele não havia deixado aquilo passar.
— “Ciúmes”, Potter? — ele cuspiu, levantando-se também, espalmando as mãos na mesa e inclinando-se sobre o garoto.
Ciúmes?
— De onde você tirou essa ideia ridícula?
Aquilo era mesmo ciúmes? Não havia motivos para que Snape sentisse ciúmes de Harry, havia?
— Quer saber? Foda-se, Snape. Eu já tô cansado desse debate sem sentido — Harry explodiu, sentia-se sufocado, parecia ter recém engolido um pomo de ouro, não era uma boa sensação.
Ele se sentia atordoado, tonto. Tinham ido longe demais com aquela conversa, mas agora não tinha mais volta.
E foi a covardia de Snape que o irritou, foi ela que abriu caminho para a impulsividade de Harry, para a imprudência. Malditos fossem os sonserinos com seus instintos idiotas de autopreservação.
Sem pensar, Harry apenas agarrou a gola da camisa branca que, até então, nem havia dado atenção. Sem pensar, ou sem deixar com que Snape o fizesse, ele pressionou seus lábios nos lábios finos dele, o beijando com raiva e arrependimento imediato.
Severus nem teve tempo de processar aquilo, muito menos de corresponder. Tão repentinamente quanto havia inciado, Harry rompeu o beijo, suspirando pesadamente.
— Sim, eu sou gay, Snape, que bom que você já sabe. Mas eu estou apaixonado pelo meu ex-professor idiota, e não pelo meu assistente que, por acaso, me beijou uma vez quando eu era adolescente. Porra! Eu nem pretendia te dizer isso, mas não é possível que você seja tão cego assim!
E quando ele pareceu querer se afastar, as mãos hábeis e firmes do pocionista o impediram, mantendo-o ali, tentadoramente perto. Surpreso, Harry buscou as orbes negras, sem poder encontrá-las. Ao invés delas, se deparou com um sorriso satisfeito e aqueles olhos tão intrigantes fechados.
— Demita-o, Potter — ele ouviu, sem nem mesmo conseguir assimilar antes daquela língua afiada o invadir.