The black dog

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A solidão tornou-se frequente, é como se houvesse uma personificação, e de alguma forma, é apenas com ela que me sinto confortável. E me sinto miserável por isso.

Rhysand está longe do meu alcance hoje, como deve ser, por ser um Grão Senhor ocupado, que passou cinquenta anos longe. De certa forma, eu o invejo. Mesmo com todos os horrores que passou, posso ver em seu rosto que houve recuperação, quase como se ele tivesse renascido de novo, não eu.

Enquanto eu estou caindo num abismo infinito. Miserável em todos os tons.

Sempre vi o mundo colorido, mesmo na extrema pobreza, me sentindo invisível, mas ainda conseguia ter esperanças. Talvez seja a minha imortalidade mudando quem sou, e temo que o para sempre seja em preto e branco.

Encaro o anel de esmeralda no meu dedo, nesse período era para já estar feliz. Venci a cadela da Amarantha e estava com casamento marcado, mas fui covarde o suficiente para hesitar dizer o sim.

Um suspiro pesado me escapa, e é como se estivesse perdendo todo o ar do meu corpo a cada vez que lembro daquela cerimônia tenebrosa.

Odeio admitir, e na verdade, não conseguiria colocar em palavras, mas me dói o coração estar na Corte Primaveril. O povo precisa de esperanças e uma rotina, saber que as coisas vão ser estáveis daqui para frente, mas não consigo me imaginar reinando por um povo enquanto estou em frangalhos.

E não consigo admitir para meu noivo que estou mais quebrada do que imaginei.

E não é como se Tamlin não tentasse trazer normalidade para minha vida, apenas não consigo aceitar. Lembro de um dos últimos encontros sociais que estivemos, e tocou nossa música, e o vi se aproximar animado, pensando que a resposta seria positiva, mas instintivamente entrei em pânico pensando que estaria novamente na frente de todos, e isso me causou náuseas. O não foi simplório, mas vergonhoso. Todos me encararam da mesma forma, e sua mão estendida baixou, seu sorriso morreu e meu coração quebrou ainda mais. Não importa o quanto tente, não consigo mais trazer normalidade e vitalidade para a vida de Tam.

Naquele momento, encarei seus olhos e esperei que ele entendesse a gravidade da situação, e ao menos dessa vez, com seus poderes e vontade, pudesse me tirar do centro do circo e me salvar.

Mas não foi isso que aconteceu.

Ianthe foi mais rápida, e trouxe outra fêmea e disse que era uma música muito bonita, não deveria ser desperdiçada. Tamlin pegou a mão daquela fêmea com facilidade, e perdeu o momento em que meus olhos denunciaram minha dor.

Ianthe foi mais adiante para salvar aquela situação humilhante, e disse que era apenas um período de mal estar, não tinha nada com o que se preocupar.

Mas aquela era a nossa música, e isso me fez querer morrer de novo.

Observei por um curto tempo enquanto eles bailavam, e pensei se ele atualmente me odiava, se seu amor era apenas fruto de toda a história que tivemos.

Como posso acordar todos os dias ao seu lado e ele não perceber que o meu mundo nublou? Que tudo que vejo é uma paisagem cinzenta, e me sinto à beira da morte dia a dia.

Mas não fiquei até o fim, não espero mais consideração, e imaginei todas as desculpas, que se tornaram verdadeiras, de como tudo que é necessário no momento é a estabilidade, me apresentar como alguém forte. E eu irei acenar e fingir que entendo, mesmo que no meu interior me sinta um troféu.

Por muito tempo precisei de proteção e cuidado, e Tamlin me ofereceu isso no primeiro momento em que me trouxe. Interpretou como um homem corajoso e capaz de superar o mundo, e eu acreditei nele. Porém quem tinha a coragem era eu.

Quem salvou o mundo fui eu.

Que diferença tem de mim para o anel que Amarantha carregava? os dois representam o poder, somos ferramentas.

Tento me convencer do contrário, de que é apenas um problema passageiro e nosso amor passará por mais esse obstáculo, mas estou desgastada. E me sinto imensamente culpada.

Não entendo como chegamos a isso. Não era meu plano no momento que fui salvá-lo chegar até esse ponto, mas por ele destruí meu ser, meu futuro e planos. Me tornei uma assassina apenas para poder o tirar de lá.

Dou uma risada sem humor, talvez estivesse destinada a pobreza, senão de dinheiro, de felicidade.

Por ele eu morri.

Acho que nunca mais me abrirei dessa forma para alguém, mostrei a Tamlin inúmeras facetas, algumas até desconhecidas, e me doei por completo.

Talvez não seja apenas de amor que um relacionamento sobreviva. E no nosso, parece não ser o suficiente para estamos juntos felizes.

Mesmo sendo inconcebível deixá-lo, sinto como se fosse ainda mais impossível esquecer o passado, lembrar da magia que existiu no início.

Sinto como se fosse há milhares de anos atrás, nós dois na campina de flores, com o pôr do sol, imaginando um futuro juntos. Casamento, filhos e até o sonho de ser sua parceira.

Olho minhas mãos, as mãos de uma assassina, e sinto que as semanas que estou com Rhysand são o que preciso realmente. Mesmo que esse lugar possa parecer uma prisão por cumprir nosso acordo, é reconfortante não estar atuando, fingindo estar em bom estado. Apenas estou aqui, lamuriando a vida que tenho, mesmo que não passe mais fome, mas esteja sedenta por um pingo de felicidade.

Encosto minha cabeça na janela, enquanto observo a neve caindo.

Se fosse em outro tempo, poderia imaginar um quadro lindo, um título para a pintura, talvez até o lugar em que colocaria, mas agora só sinto o vazio.

É como se tudo tivesse evaporado.

Parece que desenhei e pintei quantos quadros pude, um para cada sonho. Pendurei nosso retrato de casamento em que estou sorrindo, usando cores pastéis. Desenhei nosso primeiro filho, que se parece com Tam, e para aquele dia, coloquei uma roupinha verde. Pintei nosso retrato de cinco anos casados, e tinha uma festa ao pôr do sol, e naquele dia, o sol se pôs em um belo laranja. Dez anos se passaram, e estamos na sala com nossos três filhos tentando organizá-los para o retrato, e posso dizer que a pintura é tão bonita que parece real, quase como se eu pudesse até ouvir as risadas daquele momento.

E depois disso tudo, eu imagino fogo queimando cada quadro, fazendo com que cada pedaço de história deixasse de existir. Como se eu não fosse digna de uma vida feliz.

Eu encaro o fogo, e o vermelho me apavora, e é como se eu visse a vilã da minha vida.

Percebo tarde demais que imaginar me faz chorar, e me sentir quebrada me deixa sempre tão sensível.

Tenho o hábito de querer imaginar um futuro modesto e feliz, mas sempre termino imaginando que irá acabar da mesma forma, com a destruição e desgraça, e que da próxima vez não irei escapar das garras.

Ouço um barulho em outro cômodo, e imagino que seja Rhysand, e então seco os olhos torcendo para que ele não me faça perguntas. Não estou pronta para respondê-las.

Tudo parece uma grande piada cósmica, e estou sendo forçada a jogar contra esse cruel destino.

Mas tenho em mente que estou me torturando, porém, não tenho forças para superar, e percebo que velhos hábitos morrem gritando, e sinto como se eu pudesse morrer de tanto gritar que o placar está errado, esperando que alguém me ajude.

A voz no fundo da minha mente sussurra que estou me torturando, mas tornou-se um hábito. Um hábito cruel, doloroso e sangrento – e esse tipo não costuma ir embora facilmente, ele se enrosca nos cantos mais escuros da mente e, como uma erva daninha, domina tudo, controla tudo e precisa ser cortado pela raiz, não vagarosamente.

Velhos hábitos morrem gritando, mas eu apenas consigo sussurrar.

The black dogOnde histórias criam vida. Descubra agora