O Voo da Letra Esquecida

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O RIO SENA BRILHAVA NO HORIZONTE. Visto da varanda do apartamento, parecia que ao invés de pequenas ondas havia diamantes se exibindo na superfície da água. Donato suspirou. Estava ali, em Paris, finalmente na Vila Olímpica após dois anos de competições e esforços. Recordista mundial de salto em distância paralímpico, garoto propaganda de uma marca de produtos esportivos, tinha até feito uma participação especial na novela das nove, lá no Brasil. De certo modo, tinha virado uma espécie de símbolo sexual PCD, algo que o deixava arrepiado por vários motivos; uma alegria que parecia nunca alcançar o coração.

Virou-se para olhar as duas camas e voltou a suspirar.

A Vila Olímpica de Paris foi aclamada pela sustentabilidade, com um sistema de refrigeração sem ares-condicionados, baseado em canos subterrâneos que aproveitam as águas do rio, árvores por todo lado, prédios arquitetados para não pegarem sol e as famosas camas feitas de papelão. Isso sem contar a acessibilidade sem igual. E diante de toda essa benesse, a primeira coisa que Fábio, seu colega de quarto, disse foi:

— Porra, será que essa cama aguenta o peso de três?

Corpos sarados por todo lado, belezas diversas, hormônios misturados à ansiedade e excitação, vontade de descarregar as angústias e mais de 300 mil preservativos distribuídos aos paratletas diziam muito sobre o teor da preocupação do colega. A abertura dos Jogos Paralímpicos seria dali a dois dias e Fábio já tinha transado com um angolano do Futebol de Cinco, dois atletas suecos de Goalball e carregado um cara sul-coreano de Ciclismo para dentro do quarto na última madrugada.

Só de imaginar o que mais teria que aguentar nos próximos 14 dias fazia Donato estremecer. Se fosse apenas Fábio, talvez, deixasse passar. Porém, havia um clima generalizado de flerte e sensualidade, algo que deixava o atleta angustiado.

Angustiado pelo exagero, pelo fato de muitas conversas penderem para esse tema, por muitos questionarem se ele não queria transar só por ser biamputado. É curioso como muitos julgam que pessoas com alguma deficiência não transam. De fato, Donato percebia, havia um pendor entre a pena e o fetiche. Nesse ponto, sabendo o quão difícil pode ser encontrar alguém que fuja disso, ele até entendia a fogueira sexual ao seu redor. Contudo, apesar de todos vivenciarem as mesmas ondas de preconceito, seja por serem PCDs, e muitos por também serem LGBTQIA+, quando você é assexual em um mundo que, apesar da hipocrisia, recende a sexo, você recebe uma camada a mais de afastamento.

Por isso, ele escondia isso de todo mundo.

Um barulho na porta fez Donato segurar o fôlego. Como esperado, Fábio surgiu aos beijos com um cara sem o braço esquerdo. Donato já o vira em cartazes por Paris, era uma aposta dos franceses pela medalha de ouro no Tênis de Mesa Paralímpico. O colega parou de beijar o outro ao perceber que tinham companhia.

— Ah... — coçou a cabeça. — Ah, sim, sim. Excusez-moi, chérie. — E indicou a cama para que o francês se sentasse.

— De novo, Fábio?

— Cara, a gente tem que aproveitar! — Sussurrou. — Olha esse cara gato! Ele é tenista.

— Por que tu estás sussurrando? Ele não entende nada. — Donato acenou para o colega esportista e este retribuiu com um sorriso. — Tu trouxe ele pra treinar com tuas bolas, foi?

— Ai, que grosso! Eu... Eu trouxe ele pra gente se conhecer!

— Igual aos outros quatro? Tá fazendo intensivão de línguas, é isso?

Fábio caiu na gargalhada e Donato também.

— Engraçadinho. Olha, se você quiser... — e indicou o tenista com a cabeça. — A cama aguenta.

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