capítulo único

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       AS NUVENS nocticolores aglomeraram-se no céu como se uma delas tivesse contado uma fofoca e propagado a curiosidade

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       AS NUVENS nocticolores aglomeraram-se no céu como se uma delas tivesse contado uma fofoca e propagado a curiosidade. Ou como se para impedir a visualização do que estava por vir, não só com a escuridão, mas com as gotas de água que deixavam cada uma delas rechonchudas e enegrecidas. 

Tudo à volta de Atlas era pigmentado por tons de uma frieza monocromática e, por aqueles minutos, a sua curiosidade permanecia faminta. Não conseguia identificar as cores e tudo se resumiam à sombras. Sabia que as sombras pertenciam às pessoas sentadas ou em pé nas arquibancadas, mas não sabia que pessoas eram. Ou se entre elas estava algum parente, algum vizinho, algum conhecido ou o resquício de um alguém que havia partido havia certo tempo.

No centro do campo, desfilava algo com uma cauda que era arrastada pelo chão. O mascote olímpico acompanhava desgovernado a melodia que  os ouvidos defeituosos de Atlas sabiam ser uma música tradicional que alguns sabiam cantar. Era a sua língua. Era a sua gente a preencher alguns dos bancos. Era a conexão de diferentes nações que, apesar de não entenderem as palavras cantadas ferozmente pelos donos da cidade sede dos jogos, conectava-se a melodia pela sua batida e toda a essência que aquele evento carregava. 

Era o seu momento, aquele que os outros ainda desconheciam. 

O mascote olímpico continuava a sua dança em câmera lenta enquanto a cantoria seguia num uníssono meio desafinado. Não era melodia suficiente para destruir a ânsia que se acumulava no corpo magro da ginasta. Atlas tocava o seu peito, com a mão esquerda trémula e aquela sensação de que, se não estivesse a morrer diariamente ou um pedaço não lhe tivesse sido tirado, a outra mão estaria tão trémula quanto. 

A melodia carregava parte da história daquele povo que animadamente disfarçava os castigos do Universo e abria as portas do seu território para aquele evento aguardado por quatro anos. Naquele momento, ninguém lembrava o evento de dez anos atrás tampouco as palavras que se escondiam apodrecidos pelo tempo. Todos simplesmente aventuravam-se nas palavras que lembravam a compaixão do Universo para com o seu povo, que se refugiava em terras áridas que foram fertilizadas e tomadas por campos verdejantes, rios não envenenados e prosperidade.

O mascote corria pelos cantos como se guiado pelo o vento que mostrava onde se escondia a surpresa que os céus desejavam ver e, simultaneamente, esconder. E, como se conseguisse identificar, a representação do Tarak, uma criatura mística que simbolizava o amor, protecção e misericórdia do Universo, travou. 

Atlas via uma sombra, algo curioso, buscando desvendar todos os motivos da sua presença naquele espaço; estes que se estavam prestes a espalhar como um veneno ao mover do vento. Ela manteve-se quieta naquele canto, sentindo o toque do seu Tarak como se em busca de permissão para fazer alguma coisa, talvez afastar aquela cópia mal feita de si ou tirá-la daquele espaço.

Entretanto, como se todos os outros sentissem o mesmo choque, fez-se silêncio enquanto o mascote seguia para o fim da sua correria. Um silêncio ensurdecedor consumiu o optimismo que Atlas julgou ter cultivado nos últimos dois anos em que se permitiu arrebentar as correntes. Um arrepio percorreu o seu corpo, como um alerta de que diante de todas as escolhas que tinha feito em sua vida, aquele era o seu maior pecado. 

Ecos de Ferrugem e o Vôo da MariposaOnde histórias criam vida. Descubra agora