Ela tinha olhos profundos e desesperados. Sua respiração entrecortada ficou ainda mais difícil quando me viu, juntando suas poucas forças para pronunciar suas últimas palavras. Quando estavam prestes a morrer, às vezes conseguiam me ver. Devia ser algum efeito colateral. Eu não me importava, gostava na verdade, mas não sei se era a melhor visão.
— Me ajuda — sua expressão me pedia, mas no fundo ela sabia que eu não estava ali para aquilo. — Castigue ele...
Aquilo me surpreendeu. Era uma garota jovem, sua alma provavelmente não carregava tanto ódio. Não era uma existência antiga. Mas o ódio que carregava não era apenas seu, era de muitas. Gerações e gerações de pessoas como ela.
Vingá-la seria um pequeno favor a fazer por alguém que me emprestaria seu corpo. Não que eu fosse obrigada a qualquer coisa, mas eu sabia que quem havia feito aquilo com ela voltaria de uma forma ou de outra para me atrapalhar.
E eu sempre gostei de um pouco de confusão.
Quando sua alma deixou seu corpo, ela flutuou ao meu redor antes de ser carregada para o outro mundo, de onde não muito antes eu havia saído. Observei a linha dourada que se emaranhava à sua existência até ela se apagar. Entrei em seu corpo, sentindo a gravidade me puxar para baixo e os pulmões reclamarem. Assim como o restante do corpo.
Não havia como ela sobreviver. Tudo queimava por dentro, como se sua pele fosse se tornar fogo a qualquer instante. Respirei fundo e senti o veneno pulsar pelas minhas veias até chegar às pontas dos dedos, escurecendo-as. Assoprei as unhas, fazendo-as incendiar. O veneno queimou com um cheiro forte, mas logo se findou.
Arrumei o vestido do uniforme que usava, tirando a terra e um pouco de sangue. O corpo roubado se regenerava naturalmente com minha energia correndo em suas veias.
Caminhei pelo campo sem me preocupar com a pouca luz, seguindo o caminho que estava gravado naquelas memórias. Cheguei a uma grande construção de portas pesadas e paredes nuas. Era um templo. No centro da construção, uma estátua imensa do símbolo daquele culto.
Apenas os antigos sabiam alguma coisa sobre o surgimento dos mundos. As criaturas mais novas pouco suspeitavam de qualquer coisa. De Caos e de Destino e de toda sua criação e a chatice do relacionamento fodido das duas. E da minha existência. Ou do que acontece depois do fim.
Então aquelas religiões me faziam rir. O tanto de certezas que tinham, todas as ideias e regras que carregavam... Todo poder e manipulação...
E pensar que até suas ideias tinham força em algum lugar distante onde pensamentos se tornam realidades. Mas nunca a mesma força de Caos.
Chutei a estátua que se despedaçou ao cair no chão. O barulho foi suficiente para acordar o conselheiro espiritual responsável por aquele templo. Ele não demorou muito a entrar correndo pela porta, carregando uma lanterna de pilha que mirou em minhas costas.
— Quem está aí? — Fez a pergunta idiota de sempre.
— Você não acha engraçado religiões que falam sobre amor e compreensão deixarem um rastro tão vermelho por onde passam? — Peguei uma das partes da estátua entre os dedos e a apertei até se transformar em pó. — Isso não acontece só neste mundo, sabe, em outros também. Não todos, mas algumas criaturas gostam dessa ideia de poder. O poder de ser o mais forte, o mais rico, o mais seguido. O poder de ter controle sobre criaturas mais fracas e indefesas.
Virei-me para ele e sorri as bochechinhas infantis do corpo roubado.
— Olá, tio.
— Amaia...?! Você não estava... — Ele deu um passo para trás, horrorizado. Deixou cair a lanterna no chão e tropeçou nos próprios pés.
— Morta? Pois é, na verdade, ela está sim, mortinha. Você fez um bom trabalho. Uma pena que eu só estava esperando um corpo para poder aparecer por aqui e lá estava ela. Eu não me envolvo muito nos assuntos das criaturas, mas ela estava tão desesperada que decidi conceder um favor para a pequena Amaia. Posso dizer que sou uma criatura misericordiosa às vezes.
— O quê...? — Caminhei na direção dele. Ele se recompôs por um instante e levantou o cetro que andava amarrado em sua cintura. Apontou o objeto na minha direção e tentou se defender com seu poder, o que me fez rir.
— Não pare, continue, faz cócegas. Uma pena que não será o que você vai sentir... — Eu o segurei pela gola, empurrando seu corpo para baixo e forçando-o a ficar quase colado no chão. Ele suplicava entre gemidos, percebendo que não conseguiria se livrar de mim tão facilmente. — Muita gente acha que eu sou algo ruim, mas eu gosto de pensar que sou só justa. Você castigou e usou de muitas pessoas. Se livrou de muitas delas também. Deve ter achado que o pouco de poder que tem lhe dá o direito de fazer o que bem entende, uma pena que agora encontrou alguém infinitamente mais forte do que você. — Sentei-me sobre suas costas. Mesmo estando no corpo de uma criança, minha energia era muito mais forte para que ele conseguisse se livrar de mim. — Sua própria sobrinha? — Estalei a língua em desaprovação. — Eu sabia que existiam pessoas bem degeneradas na sua espécie, mas vocês ainda conseguem me surpreender. Estou brincando, nada mais me surpreende.
Ri, esparramando-me pelas suas costas até ficar deitada sobre elas, minha cabeça ao lado da cabeça dele. Ele reza baixinho, errando as sílabas enquanto pedia ajuda para algum deus que não o auxiliaria. Não contra mim, pelo menos.
— Eu pensei muito em qual seria o seu castigo enquanto caminhava do lugar onde você abandonou ela. Eu queria muito fazer com você pior do que fez com Amaia, mas como eu disse, eu sou justa. Então eu pensei e pensei e bem, acho que está cedo para o seu castigo. Nos vemos em breve, ok?
Saí de cima do homem e caminhei até a porta, deixando ele estatelado no chão, sem saber como reagir.
Ele pensou que havia se livrado de mim, mas seu castigo estava só começando e ele suplicaria de joelhos pela minha misericórdia.
E foi o que fez depois de três meses aturando minhas pequenas torturas. Ele não confiava nem mais em sua sombra ou em seus sentimentos, e ficava ainda mais maluco toda vez que me via assistindo aos seus cultos, sorrindo para toda merda que falava para seus fiéis. Não conseguia dormir, não conseguia se alimentar, só pensava no quanto estava se esforçando para ficar em pé, como se quisesse provar para mim que aguentaria sua punição até o fim. A loucura se aproximava cada dia mais e ele caiu de joelhos e me implorou por misericórdia. Eu concordei em acabar com aquele sofrimento, mas claro que queria um grande espetáculo: em um dos imensos eventos que ele costumava fazer, anunciou ele mesmo para todos, os crimes que havia cometido.
Não eram suas palavras, claro, era minha influência sobre a sua pessoa, mas não importava. Depois de confessar o rastro de sangue que deixou por todos os lugares por onde passava, tentou tirar sua própria vida, horrorizado com o que acabara de falar e mais ainda pelo que viveria quando o julgassem. Mas ele não escaparia tão fácil assim, então deixei que vivesse mais um pouco.
Depois daquele dia, demorei para me reencontrar com ele, só alguns meses mais tarde, quando estava para receber sua pena fatal. Ele não tirou os olhos de mim, mais desesperado com a minha presença do que com o fim tão perto de sua vida patética. Ele achou que havia se livrado de mim, mas eu que me livrava dos outros, não o contrário. Sua alma deixou seu corpo e ele ficou ainda mais surpreso por me ver lá, encarando-o como se continuasse com seu corpo terreno.
Sorri quando os Recicladores devoraram sua existência, arrancando pedaço por pedaço, alimentando-se daquela criatura que sempre se achou tão melhor do que todos, mas que agora nem ao menos voltaria para uma nova vida. Era o seu fim. E o começo de algo novo.
Aquilo deixaria Caos zangada, mas não me importava. Ela não sabia como as coisas funcionavam e eu não precisava de sua permissão para fazer o meu trabalho. Não importava o quanto ela disseminasse mentiras sobre os Recicladores ou me procurasse nos confins das dimensões. Ela poderia carregar a fama por ser a criadora, mas seu poder acabava aí. Seria sempre a boazinha que gerou tudo, mas também carregava o ódio e a inveja por ser apenas isso. Não controlava Destino, não tinha o conhecimento de tudo, não controlava o fim.
Eu amava aquilo e estava louca para ela finalmente me encontrar e eu poder jogar tudo em sua cara.
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Amaia
Short StoryConto escrito para o desafio do Sodalício das Pétalas de março de 2024.