O canto das profundezas

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A ruralidade sempre fora meu refúgio, um local onde o murmúrio da natureza acalmava minha alma inquieta. Dirigi-me à cozinha, começando minha busca por um mero pedaço de queijo para o café da manhã.

- Meu dia já começa assim? - murmurei, exasperado ao constatar que o queijo havia acabado. O destino parecia querer me empurrar até a casa da dona Carmina.

Dona Carmina era uma mulher de coração bondoso, mas suas histórias sobre lendas locais eram incessantes. Apesar de minhas tentativas de demonstrar desinteresse, ela continuava a falar, como se as sombras de seu passado a obrigassem a compartilhar seus segredos.

- Dona Carmina! - chamei, batendo à porta. - Vim em busca de outro queijo. A senhora está em casa?

Após alguns instantes, a porta rangeu, revelando uma mulher idosa, movendo-se lentamente com um andador. Sua figura era baixa e rechonchuda, com um coque que mantinha seus cabelos brancos em ordem.

- Oi, querido! - disse ela, ofegante. - Desculpe a demora. Mesmo com este andador, a idade não tem sido generosa. Entre, por favor, vou pegar o queijo.

Enquanto ela se afastava, minha atenção foi atraída por retratos antigos na sala, especialmente o de Iara, a mãe-d'água, uma sereia que sempre pareceu me observar. Ao entrar na cozinha, vi o queijo sobre a mesa, e um alívio percorreu meu corpo, pois assim poderia partir sem ouvir mais uma vez as histórias de Dona Carmina.

- Obrigado, dona Carmina, mas preciso ir - disse, pegando o queijo e me levantando rapidamente.

- Espere, meu querido! Você não ouviu a história de hoje!

- Já conheço essa história, não precisa repetir.

- Não! Esta é diferente. Sente-se no sofá, você não se arrependerá.

- Tudo bem, mas seja breve, por favor - respondi, já prevendo a narrativa familiar.

- Já ouviu falar da lenda da Iara? A mãe-d'água? - ela começou, sua voz tremendo de emoção.

- Sim, dona Carmina, você só fala dela para mim.

- Mas falo para te alertar. Todos os dias você pesca naquele riacho, é perigoso! Se ela te avistar, será seu fim. Muitos homens desapareceram aqui, só encontraram suas roupas no rio anos depois.

- Isso é apenas lenda! Não acredite nessas histórias, são contos para fazer crianças dormirem - retruquei, tentando afastar a inquietude que começava a surgir em mim.

- Não subestime, querido. A verdade é mais aterradora do que você imagina.

Com um aceno de cabeça, me despedi, mas um nó se formou em meu estômago. Ao sair, um alívio me invadiu, mas a pena por Dona Carmina permaneceu. Como poderia libertá-la dessas sombras que a assombravam?

Depois de um café da manhã tardio, preparei-me para ir ao riacho, um lugar que sempre considerara ser puro e tranquilo. Mas, à medida que as horas passavam, a luz do dia se apagava, e os mosquitos tornavam-se insuportáveis. Com um suspiro, comecei a arrumar minhas coisas para ir embora.

No entanto, ao tentar pegar minha lanterna, percebi que não a encontrava. Abrindo a bolsa completamente, percebi que a lanterna estava apoiada no topo de uma pedra. Aproximando-me cautelosamente, o inesperado aconteceu: a pedra cedeu sob meus pés, e eu caí na água.

Encanto Fatal | Folclore Brasileiro Onde histórias criam vida. Descubra agora