Em terras distantes, em lugares onde a magia é presente além da imaginação, histórias são escritas e precisam ser contadas, essas histórias estão agora reunidas nessa coletânea de contos fantásticos.
A visão da garotinha estava turva, algo estava estranho, mas não saberia dizer o quê. Tudo era mais acinzentado do que de costume, mas ainda estava feliz, ainda sorria olhando para o espelho orgulhosa do seu feito.
— Mãe!
Sua voz infantil chamava do banheiro, animada como estava não podia esperar. Na cozinha, a mãe secou as mãos no pano que pendia sobre o ombro e então foi se encontrar com a pequena.
— O que foi dessa vez, Iris? — Ainda que o semblante da moça quisesse demonstrar seriedade, a voz doce seria incapaz de fazer a garota sequer piscar.
— Eu consegui fazer tranças! Olha!
O cabelo loiro da pequena estava bagunçado numa tentativa falha de tranças, uma de cada lado. Pelo menos nisso ela acertara.
Com um belo sorriso por ter conseguido o que queria, afinal, seu objetivo nunca foi de fato fazer suas próprias tranças, rapidamente a garotinha arrasta um banquinho que ficava no canto, para deixá-la numa altura adequada para que sua mãe cuidasse do seu cabelo.
— Presta atenção. — Não era necessário muitas explicações, somente observação. Com maestria e carinho, a mulher trançava de forma simples os longos cabelos da menina. Não demorou muito para que estivesse pronto.
— Sabe... Espera aqui um minutinho. — Com um sorriso arteiro, a mãe sai do banheiro e rapidamente volta com uma caixinha pequena. Sem se dar ao trabalho, abre a caixa e mostra seu conteúdo à pequena. — Bom, era pra eu ter esperado seu aniversário, mas...
Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.
O sonho foi interrompido com a parada abrupta da carroça em que se encontrava. Acordou e, após se localizar brevemente, teve a certeza de que, mais uma noite, sua mente a torturava com as memórias de uma vida que parecia passada de tão distante do que vivia agora. Sequer se importava em saber para onde estava indo ou que dia era hoje, nem se lembrava de quantos anos estaria fazendo este ano. Sua vida já não lhe pertencia há tempo suficiente para esquecer desses "pequenos" detalhes.
Hoje era o dia. Iria escapar ou morrer tentando. A segunda opção não lhe parecia tão ruim, dadas as circunstâncias. A coleira de bloqueio a impedia de usar os poderes. Por isso, na última semana de ócio, alguns escravos haviam combinado entre si de tentar a fuga no próximo transporte. As coleiras haviam sido danificadas; provavelmente conseguiriam usar seus poderes, mesmo que de forma descontrolada ou limitada.
Dalilah não contava com isso, estava sendo sugada há tempo demais para confiar nos seus poderes. Seus cabelos haviam ficado brancos na penúltima coleta. Sentia em seus ossos a cada festa em que lordes imundos se embriagavam da magia de escravos. Não era apenas seu poder, mas sua vida que se esvaía.
Finalmente, dois soldados abriram a carroça para pegar aqueles que seriam deixados no primeiro ponto. Era agora.
O homem mais próximo da porta chutou um dos soldados, que voou para longe. A mulher sentada de frente a ele eletrocutou o outro, e ela não estava nem um pouco surpresa por conseguir usar sua magia. Aquela sequer era a primeira vez, já que ela havia ajudado a deixar as coleiras estragadas. Aparentemente, ambos estavam em pleno controle dos poderes.
Os escravos começaram a descer da carroça para correr; agora era cada um por si. Dalilah foi a última a sair, sempre sortuda como era. Quando ia começar a correr, um soldado puxou uma de suas tranças, e ela caiu com força no chão.
— VERMES!
O soldado estava enfurecido. Talvez os outros dois tivessem morrido, ou não. O ódio do soldado não era por qualquer senso de vingança; era sua autoridade sendo colocada à prova que o deixava transtornado. Dalilah conhecia pessoalmente a crueldade com que eles agiam, mas daquele homem especificamente não poderia se esquecer. A imagem dele invadindo sua casa, lutando com seu pai que acabou morto numa poça de sangue, assim como o resto de sua família, tomando a garota para si e arrancando o colar de seu pescoço como um souvenir pessoal jamais poderia ser apagada. Agora seu cabelo loiro estava branco de tanto ser sugada e usada como droga para pessoas ricas e poderosas.
Ela tentou se levantar, mas ele foi mais rápido, colocando um dos pés no pescoço dela. A jovem tentava se livrar do aperto enquanto ficava cada vez mais sem ar. Só então lembrou de tentar usar seus poderes. Segurou firme na perna dele e tentou se concentrar o quanto podia na situação, com medo de não ter restado nada dentro de si. Mas, graças aos deuses, o aperto foi afrouxando e ela enfim conseguiu respirar.
Em resposta, ele tirou uma adaga da cintura e, sem que houvesse tempo para tentar se defender novamente, fez um grande corte do lado direito do rosto de Dalilah, que ia da testa até a boca, passando pelo olho com o qual não conseguia mais enxergar. A dor que sentiu serviu para alimentar a magia adormecida em si.
Com um pouco mais de concentração, o soldado caiu no chão urrando de dor. Infelizmente, nenhum dano físico permanente seria causado. Era somente a dor causada pela contração de músculos por todo o corpo. Ela não poderia deixar assim, não quando sentia o sangue escorrer de seu rosto e sabia que se voltasse a enxergar seria por um milagre.
A garota então aproveitou a oportunidade para pagar na mesma moeda. Pegou a adaga caída no chão, se aproximou do homem que se contorcia e fez um corte parecido com o que havia ganhado. Não sentiu que estava fazendo justiça; na realidade, não havia espaço para outro sentimento senão o ódio.
— EU VOU TE MATAR! — Mesmo na decadência em que se encontrava, ele não abandonava os ideais conturbados aos quais servia. Ainda era um soldado leal da coroa corrupta, e com toda certeza morria por dentro ao se ver embaixo de uma escrava de sangue.
— Quero que tente me achar, que tente me matar, pra que eu possa cortar a sua garganta primeiro e te ver morrendo engasgado em seu próprio sangue.
Ao se aproximar para falar, Dalilah conseguiu perceber que aquele ser que tanto desprezava estava usando seu colar, talvez como forma de lembrá-la do que perdeu, ou lembrar a si mesmo do poder que tinha ao destruir vidas. Sem pensar duas vezes, ela pegou de volta o colar e, por mais que quisesse continuar a vê-lo sentindo dor, decidiu agir. Cortou um pedaço da capa dele para tentar estancar o sangue que saía em abundância do corte em seu rosto e retirou a coleira que a incomodava. Por fim, se afastou e cortou o poder que ainda o fazia sofrer no chão.
Ela começou a correr o quanto lhe era permitido, dadas suas condições. Não parou até sumir da estrada em que estavam e entrar na floresta que rodeava a mansão, onde provavelmente teria seus poderes sugados para o prazer de qualquer que fosse a pessoa. Mas agora estava livre. Por mais que não soubesse o que fazer dali para frente e por quanto tempo conseguiria se manter na encolha, tentaria se permitir experimentar um pouco da liberdade.