Capítulo I.

236 23 55
                                    

 "na morte
arrancaram da terra os ossos meus;
não me insultes! bêba-me."


A cacofonia do desespero humano.

Foi isso que o perturbou primeiro. Não as paredes escuras, manchadas e descascadas enquanto andava pelo corredor mal iluminado em direção ao érebo. O cheiro acre de urina e soda cáustica forte, não.

Os gritos.

Homens e mulheres, jovens e velhos, em camas mal construídas, agonizando em seus próprios corpos como se lhes torturassem a alma. Alguns contidos, outros inconscientes. Muitos falavam, gemiam e resmungavam. Outros imploravam para morrer com súplicas que se arrastavam pelas gargantas como facas amoladas. Altos gritos desesperados que faziam a pele de Amaury arrepiar. Havia medo naqueles sons. Uma angústia palpável. Um eco assustador que emergia dos terrores incompreendidos que perseguiam as pessoas em seus sonhos acordados e adormecidos.

A agonia pesava o ar e reverberava pelos corredores e cômodos abertos da velha casa convertida.

– Eles querem mais. – disse o médico. – Eles estão implorando. Enlouquecidos com ela, e sem ela. Blissium. É assim que a chamamos.

Amaury afastou-se em alguns passos, encostando-se em uma das paredes. Ficou assustado assim que um grito contido e afiado escapou de um homem mais jovem que ele, assistindo-o ser sedado até o sono, tirado de onde ele estava lutando com veias temporais saltadas e olhos esbugalhados. Foram necessários quatro homens para segurá-lo, e outro para deixá-lo em estupor. Carregaram-no para fora e o cheiro de vômito e resíduos os seguiu. Amaury virou a cabeça, respirando com cuidado.

– Esses efeitos... São imediatos? – questionou o detetive, com os dentes cerrados.

– Não. – o médico respondeu. – Quando injetada, a Blissium traz um efeito arrebatador. Extasiante. Alguns narram um encontro pessoal com Deus e diálogos frente aos olhos de Satã. Outros a comparam com um orgasmo contínuo que faz tremer dos pés ao coração.

Amaury engoliu em seco.

– Tudo começa no dia seguinte. A substância entra na mente como um verme. Traz pesadelos que não conseguimos acalmar. Alguns deles nós mantemos sedados, esperando que consigam se curar com o tempo. Mas a maioria é como este homem que viu. Se acordam, gritam, babam, choram, se mijam. Temo que não saiam vivos deste sanatório. Vê por que precisamos da sua ajuda?

– Sim, doutor. – Amaury concordou.

Era chantagem emocional, era verdade. Ninguém vivo, esbanjando calor sanguíneo, podia ver aquelas pessoas e não sentir culpa pela própria vitalidade. Quase impossível não querer ajudá-las. Talvez não houvesse nada que ele pudesse fazer para curá-las, mas talvez, possivelmente, ele pudesse fazer algo para salvar muitas outras pessoas antes que elas ficassem doentes pelo que os médicos e investigadores chamaram de Blissium.

Tudo o que Amaury sabia, àquela altura, é que Blissium era, nada mais e ironicamente, nada menos, que sangue puro de vampiro. Chegava até essas pessoas em micro potes de vidro, herméticos, pela metade, equivalente a uma dose. Quando injetada, ela consumia o corpo em menos de trinta segundos, proporcionando ao usuário um prazer inigualável, um torpor febril e impetuoso, fazendo-o regozijar-se e contorcer-se copiosamente por longos vinte minutos.

Amaury anotava todos os relatos que ouvia em sua caderneta, interessado em saber como esses efeitos eram possíveis dentro do corpo humano sem torná-lo um demônio. Como funcionava? Por que não foram transformados? De onde surgiam os pesadelos?

Bloodbound Echoes.Onde histórias criam vida. Descubra agora