Um

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  ADA SNOW
Ilha de Vinterdal, Noruega
Antes...

Aquele verão estava diferente, mais quente, os raios do sol alcançavam os campos, derretendo a neve em quase todas as áreas, tornando os passeios ao ar livre mais agradáveis.
Eu brincava de desenhar libélulas no ar. Cada movimento do meu galho era uma pincelada de esperança, onde minhas companheiras aladas giravam em uma dança secreta só para mim. Charlotta, minha única irmã, estava sentada na grama, entrelaçando coroas de flores. A liberdade era rara, estávamos agradecidas por nosso pai nos permitir escapar do confinamento da casa praticamente todas as tardes daquele verão.
— Ada! — chamou Charlotta. — Só mais cinco minutinhos!
— Mas já está na hora de voltar?
— Sim, Ada. E papai vai perguntar.
— Por que diversão sempre passa rápido? — protestei, fazendo beicinho.
Charlotta sorriu, e naqueles momentos, ela era o reflexo da fotografia na sala. A imagem da mamãe, sempre linda, que papai tanto admirava. Às vezes, eu brincava de imaginar que era a mamãe ali, sorrindo para mim, e a tristeza do mal que eu fiz ficava menor.
— Olha só a coroa que fiz! — cantarolou ela, erguendo a coroa de flores.
— Uau, Lotta! Hoje você caprichou, hein?
— Não vem pegar?
— Espera, estou quase chegando... — Com o graveto, tracei no ar, e Charlotta movimentou a coroa, como se a conduzisse em direção à minha imaginação.
Mas então, o sorriso bonito da minha irmã se desfez, e seguindo seu olhar, vi o Sr. Aksel, filho do Grão-Mestre, de mãos dadas com Norabel, a irmã dele que sempre me jogava pedras.
Eles estavam rindo juntos, mas ao nos verem, ele ficou sério.
Foi estranho.
Nosso pai havia se tornado o comissário da polícia no início do verão passado, quando nos estabelecemos em Vinterdal. Rapidamente, ele se aliou ao Governador da ilha e Grão-Mestre da congregação, o homem mais devoto e mais rico que conhecíamos. Papai e o Grão-Mestre eram as maiores autoridades ali. Mas as filhas dele não gostavam da gente. Não tínhamos mãe para sermos uma família interessante, e a culpa era toda minha.
— Ada, vem! — chamou minha irmã, e quando me virei para ir com ela, tropecei, mas não cheguei a cair. Duas mãos fortes me seguraram e me ajudaram a ficar de pé.
— Se machucou? — perguntou o filho mais velho do Grão-Mestre.
Ele nunca tinha falado comigo antes, mas parecia preocupado de verdade, com aquela voz firme que lembrava o vento frio do inverno.
— Não, estou bem, Sr. Aksel — respondi, vendo gentileza em seus olhos.
— Você parece muito sensível para uma queda brusca, criança. Tenha mais cuidado.
Balancei a cabeça positivamente.
— Mas estou bem — olhei para o galho quebrado em minhas mãos —, só que...
— Seu brinquedo quebrou?
— Sim, Sr. Aksel...
— Por isso precisa ter mais cuidado, poderia ser algo valioso, poderia ser sua perna. — Se agachou para pegar a outra metade caída na grama.
— É meu pincel mágico. Ele é bastante valioso também — expliquei, mostrando o pedaço em minha mão.
Ele sorriu.
— Você é uma artista?
— Algo assim...
— Então precisa de outro galho. Esse está quebrado. — Ele olhou ao redor.
— Não, senhor, esse tem poderes, posso desenhar com a outra ponta.
O Sr. Aksel arqueou uma sobrancelha.
— E o que você está desenhando?
— Libélulas — confidenciei com a mão em forma de concha perto da boca —, elas me mostram como voar mesmo sem asas.
Mexi o galho no ar, desenhando figuras invisíveis que só eu podia ver.
— São magníficas — disse, observando meu traço com um olhar que parecia ver através da minha imaginação.
— Está zombando de mim, Sr. Aksel?
— Claro que não...
— Aksel, vem! — chamou Norabel, sua voz zangada dispersando minhas libélulas imaginárias.
— Continue desenhando, criança, você tem um dom especial — disse ele, afastando-se, piscando para mim, como se fosse um segredo nosso.
Papai sempre dizia que nasci invisível, assim como minhas libélulas, mas aquelas palavras do Sr. Aksel me disse o contrário e me acalmou como um abraço bem quentinho.
— Sério que consegue ver minhas libélulas, Sr. Aksel? — Corri atrás dele, enquanto minha irmã gritava meu nome.
— Senhor, não! — Ele parou na minha frente. — Só Aksel para você.
— Mas o senhor é o filho do Grão-Mestre e...
— Sim, mas não sou o seu senhor. Nunca serei. Me chame de Aksel.
— É que parece desrespeitoso, e já sou bastante desobediente na vida.
Ele sorriu, e Norabel revirou os olhos, cruzando os braços e virando de costas.
— Tenho dezessete anos, criança. Não faz muito tempo, eu estava na sua posição.
— E que o senhor é poderoso. E homens poderosos merecem ser senhores.
O sorriso dele se alargou.
— Eu, poderoso?
— Sim. Muito poderoso. — Suspirei, meus olhos fixos em seu sorriso bonito.
— E por qual motivo você acha isso?
— O senhor faz o medo ir embora. Quando sorri, é como se o sol saísse das nuvens. Sua voz é pesada como trovão, mas não assusta, é como música de ópera, que faz a gente querer dançar, não correr e se esconder. — Mordi o lábio, buscando mais palavras. — O senhor escuta as outras crianças, faz elas se sentirem importantes. E eu... eu não conheço ninguém assim... e... — gaguejei, procurando o sorriso que ele desfez. — Desculpa, Sr. Aksel... Não fala para meu pai. — Olhei para baixo, então ele se agachou na minha frente.
— Desde quando tem me observado, menina?
— Eu... eu... eu nem olho muito.
— Não sou seu senhor. Nenhum homem é. Somente o Deus verdadeiro pode reivindicar esse título na sua vida, e ele não assusta mulheres e crianças. Você consegue não esquecer isso?
— Eu acho que... — Respirei fundo, confusa, um ventinho bom se espalhando pelo meu peito. As palavras dele eram tão diferentes das dos outros homens. Diferente das palavras do papai. — Posso chamar o senhor de Solskinn?
— Solskinn? Por que, Solskinn?
— O sol é um senhor sobre o frio do inverno, mesmo ele não sendo chamado de senhor, ele é, e é gentil com a humanidade. E o seu sorriso... seu sorriso é tão precioso como os raios do sol por aqui.
O Sr. Aksel ficou um tempinho sem soltar as palavras, então perguntou:
— Qual a sua idade mesmo?
— Seis anos — respondi, erguendo uma mão aberta e o graveto.
— Não está mentindo? — Juntou as sobrancelhas. — Tem certeza de que não é uma pequena senhora de cinquenta anos?
— Não. — Eu ri de gargalhar. — É que eu converso o tempo todo, até com as pedras do chão e as flores da estrada. Converso sem nem perceber as palavras. E já conheço três idiomas também.
Ele se aproximou ainda mais, os olhos fixos nos meus.
— Tudo bem. Pode me chamar como quiser, Ada. — Piscou, me deixando surpresa. — E suas libélulas... eu consigo vê-las. Elas brilham intensamente. Impossível não notar. E são lindas. As mais lindas que já vi.
— O senhor sabe quem eu sou? Meu nome? — Minha voz tremeu de curiosidade.
— Claro que sei, conversadeira. — Ficou de pé outra vez, tocando meu nariz de um jeito brincalhão. — Ada não é um nome comum por aqui. Até hoje, você é a única que eu conheço pessoalmente. Você tem o nome da primeira mulher na ciência da computação.
— Uau, eu... eu não sabia disso.
— Como não sabia, se conhece três idiomas e conversa até pelos cotovelos? — Sorriu, os olhos brilhando com diversão.
— É que eu ainda sou criança, né? E o mundo é gigante lá fora para caber inteiro na minha cabeça. Parece que não entende — retruquei, mas logo cobri minha boca com a mão.
Ele estreitou os olhos.
— Olha só, que personalidade atrevida você tem...
— Não, eu... eu... sou obediente. — Minha voz falhou, e eu senti vergonha.
— Shh, tudo bem, estou brincando com você, Ada — sussurrou, gentil. — Foi um atrevimento fofo. Fica calma. Não precisa me obedecer.
— Minha mãe... Eu nasci no país que ela estudava e... ela escolheu meu nome antes de... ir para o céu. É muito importante? Er... o que a Ada adulta fez é importante?
— Primeiro respira. — Ele puxou o ar, soltou pela boca e me esperou repetir. — Ada Lovelace foi uma matemática e escritora inglesa, pioneira na programação de computadores. Foi ela que criou o primeiro algoritmo para o processamento de máquinas. Sua mãe te presenteou com um nome poderoso.
— Sim... — Sorri, uma cosquinha de alegria afastando minha dúvida. — Mas eu... eu não sou importante. Não faço nada de especial, só ocupo o lugar de pessoas que poderiam estar aqui criando coisas úteis.
— Ada, não fale assim. — Passou os dedos pelos meus cabelos com um carinho que me fez fechar os olhos para gravar. Era tão bom receber carinho.
— Papai sempre faz carinho nos cabelos da minha irmã... É tão bom, por isso Lotta dorme sorrindo.
— Ele não faz carinho nos seus?
Abri os olhos.
— Ele é... muito ocupado com o trabalho e eu nunca durmo na hora certa. Mas eu mesma faço isso em mim, com minha mão.
O Sr. Aksel fechou os olhos e respirou fundo antes de sorrir meio triste para mim.
— Você é muito importante, Ada. Você é bem articulada para a sua pouca idade, e isso é raro. E também é a princesinha das libélulas, e as princesas têm seu próprio valor. Um dia, elas ascendem ao trono e passam a governar, até mesmo sobre os senhores.
"Você é uma inútil!"
"Burra, molenga e inútil!"
"Nem para morrer você presta!"
Palavras do meu pai invadiram minha cabeça, dizendo que era tudo mentira, mas eu queria acreditar no Sr. Aksel.
— Sou importante... — sussurrei, abrindo os olhos enquanto ele segurava a mão da irmã e se afastava.
— Adeus, princesa das libélula!
— Adeus... Solskinn! Obrigada por acreditar em minhas libélulas flutuantes. — Acenei, sorrindo. — Uma alma invisível pode, sim, ser notada. Ela pode até se tornar rainha e governar um senhor que considera tão poderoso quanto o sol. Fazer ele querer ser o súdito dela — sussurrei com a mão na boca.
Sr. Aksel pareceu que ia me corrigir, mas não disse mais nada, apenas se virou e saiu com Norabel, deixando meu coração estranho, cheio de bolhas de sabão e batendo forte como um tambor.
— O que ele queria, Ada? — perguntou Lotta, segurando minha mão, me guiando para casa.
— Acho que só estava de passagem e aproveitou para observar as libélulas comigo.
Charlotta beijou minha cabeça.
— Não conta para o papai, tá bom? É... para ele não brigar com você.
Assenti.
— Lotta, a gente não precisa ser super notada para ser especial, sabia? E se alguém olhar direitinho para a gente, consegue enxergar nosso brilho. Vou ser rainha quando eu crescer. Já decidi. As rainhas governam e não permitem que os homens malvados sejam maus com as crianças.
— Foi o Aksel que te disse essas coisas?
— Ele viu minhas libélulas invisíveis, e eu entendi muitas coisas. Minha cabeça está muito cheia de pensamentos agora.
— Você é tão esperta, Ada. Sempre curiosa e tagarela. — Lotta beijou minha mão. — Eu queria tanto que nunca esquecesse do quanto é especial.
— É o papai que me faz esquecer — minha voz quase sumiu —, quando lembra que eu fiz a mamãe morrer com a minha enorme cabeça...
Lotta parou, seus olhos encontraram os meus, então ela me abraçou forte, como se quisesse proteger o coração das minhas palavras.
— Não fala para o papai que eu te disse isso, mas sua cabeça sempre foi normal. Ele inventou isso. Você é linda, Ada. Você não teve culpa. Você era só um bebezinho lutando pela vida.
— Um bebê muito agitado para o corpo frágil da mamãe — rebati.
— As mães deixam os filhos fortes para o mundo, Ada. E a nossa mãe... ela se sacrificou para te colocar assim nesse mundo. Forte. Mamãe escolheu você, então lembra que você é forte por ela, e que você não pode deixá-la triste não acreditando nisso. Você tem muito a oferecer a este mundo, minha irmã — explicou Lotta, e senti como se ela estivesse me dando um presente com suas palavras.
As palavras da minha irmã eram sempre como um presente, mas às vezes, só às vezes, deixavam minhas costas mais cansadas. Era cansativo ser uma criança forte. Minha cabeça doía, preocupada com tudo que eu precisava fazer, com as responsabilidades.
— Sim, eu sou forte, Lotta — sussurrei, confirmando com meu rosto, sorrindo para deixá-la feliz. — Por isso cuido de você e do papai. Sempre vou cuidar das pessoas que amo.
Passei meus dedos calejados entre os cabelos acima da minha nuca, acariciando o lugar que ainda doía desde o último cascudo do papai. Estava sempre inchado porque eu era descuidada com os afazeres e regras.
Juro que tentava não ser desobediente, ficar quieta para evitar punições, mas era tão difícil fazer tudo em um só dia...
Eu gostava de correr, escalar as árvores, olhar atrás dos muros, comer a comida que eu preparava para o papai e Lotta. Papai comia tanto, não deixava muitas sobras.
Às vezes eu também queria dormir cedo e acordar tarde, ignorar a lenha do galpão e não precisar alimentar o fogo...
Eu não tinha medo de lobos, era o frio da madrugada que me congelava. E eu nunca terminava minhas tarefas na hora certa, sempre tinha que ficar acordada quando todo mundo estava dormindo.
Ser desobediente e ter a mente inquieta só me prejudicava, mas eu não conseguia ser disciplinada.

AVISO DE CONTEÚDO SENSÍVEL

O livro aborda temas profundos e dolorosos. Nele você encontrará personagens com feridas íntimas: da ansiedade, dos episódios de sonambulismo (onde o corpo foge do que a mente não consegue processar) e dos sonhos lúcidos que confundem os limites entre pesadelo e liberdade. Também há cenas de luta contra vícios antigos e menções a abuso sexual infantil (sem descrições gráficas, mas com peso emocional).
As prisões aqui não são apenas físicas: são dogmas religiosos distorcidos, famílias que oprimem em nome de um "amor" tóxico e sistemas de poder que normalizam a crueldade.
Se esses temas fazem parte da sua história, este livro pode não ser seguro para você.
E está tudo bem.
Se ainda assim desejar continuar, permita-se pausar quando necessário, respirar fundo ou até fechar o livro. Sua segurança emocional é mais importa.

ELIJAH - O CEO RENEGADO Onde histórias criam vida. Descubra agora