Capítulo 1 - Mochila Velha

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Só eu para conseguir apreciar o ventinho frio que sai da pequena janela da cozinha, de onde sai uma claridade baixa e ilumina o balcão onde estou esquentando meu misto em uma sanduicheira que a trava está quebrada, preciso ficar segurando durante todo o processo, mas vale a pena, melhor do que o pão frio antes de sete e meia da manhã.

A calça jeans e a blusa de uniforme de uma escola pública qualquer apertam no meu corpo quando me sento no silencio pacífico que só a matina traz. Eu, a mesinha velha, a cadeira que estou, o barulho das minhas mordidas, a fumaça do café que eu aprendi a fazer na marra comprando-o com o dinheiro que eu faltava implorar de joelhos pro meu pai e Deus.

"No final das contas, ele cedeu porque sabe que precisa do café mais do que você."

Ouço a voz de Deus, sorrio, lembro de todo álcool e concordo.

— Verdade, Deus. Só o Senhor para tirar uma casquinha dessa trágica realidade.

Levanto, lavo minha louça para não obter uma sentença de morte e completo: — Vamos?

"Vamos!"

Eu não o vejo, mas sei que cada palavra Dele é dita com mansidão e com um sorriso de orelha a orelha. A ternura de Deus é inimaginável à minha mente humana tão crítica.

Bom, não sei nem como Deus consegue gostar de mim, eu não sou a melhor aluna e, com certeza, quando estou junto com Miele, primeira pessoa que sempre vejo a o entrar na escola, sou uma das piores.

— Você não demorou hoje, Betina — diz ela, sorrindo e me dando o grande abraço.

— Eu nunca atraso — rebato ao arrumar o regulador da minha mochila que de tão velha estava folgando e soltando.

— Certo. Quando é que você vai comprar outra mochila?

— Quando o senhor Leandro Gutemberg resolver parar de gastar dinheiro com algo que ele devia estar usando para matar bactéria.

— Sempre difícil chamar de bebida alcóolica né?

— Não é fácil, Dó, Ré, Mi.

— Entendo.

Nossa primeira aula é Educação Física e, como de costume, sentamos em um banco, de frente para a quadra aberta onde nossos colegas jogavam queimada contra a outra turma.

Essa escola não tem nada de especial, nem mesmo cores, as cores que há estão desbotadas, a quadra tão cinza se mistura com o verde das árvores e plantas, quase um local de retiro. O que mais me impressiona é que o verde da árvore que estamos abaixo, nunca desbota.

"As árvores Sou Eu mesmo que dou cor. E as pinturas que saem das minhas mãos, não se desbotam." Deus diz e eu sorrio.

— Que foi? — infere Miele. — Delírios divinos de novo?

Eu rio, é assim que ela chama minhas conversas com Deus.

— Para um bom ignorante, conversar com Deus sempre será um delírio — rebato.

— Sei. Tá certo. Ei, vamos para aquele Hookah hoje à noite?

— Vei, cê sabe que eu não fumo, nem gosto de ficar perto de gente que bebe.

— Prometo que lá terá uma sacada para você olhar para o céu e contemplar Deus.

— O Jotavê que te chamou né? — Inclino minha cabeça para ela, comprimindo os lábios em desconfiança.

— Por favor... — Ela faz cara de pedinte, o que confirma minha hipótese. — Seu pai nem vai perceber.

— Tá bom, vou falar com a Akemi.

Akemi era uma mulher natural do Japão que cuidava de mim como minha responsável legal. Ela dizia que minha mãe confiou esse trabalho para ela, mas nunca disse nada sobre minha mãe. Eu perguntava o porquê, mas ela fugia do assunto. Concluí então que minha mãe, seja quem for, é uma desnaturada que me abandonou e não merece o meu esforço.

♫♪

Quando cheguei em casa, meu pai não se encontrava, não precisava de uma cartomante para saber o que ele estava fazendo. Joguei minha mochila acabada no chão e, lembrando do convite de Miele, recordei também que ela recebia uma pensão da minha misteriosa mãe. Respiro fundo ao pensar que é ela que tem que cuidar desse dinheiro porque se Leandro sonhasse que esse dinheiro existe, iria virar álcool na barriga dele em uma semana. Enfim, preciso de dinheiro para uma mochila nova.

O frio apertou e, passando a frente do espelhinho ao lado da porta da sala, vejo que meu cabelo parece uma guitarra de tão elétrico, se liga-lo em um amplificador e passar meu dedos nos fios eu posso provar que sai som. Ainda bem que ele é curto, o que me permite ir rapidinho no banheiro umidificar, passar um creme de pentear e dar uma leve escovada.

Sorrindo para o espelho, fico com um pouco de vergonha dos meus olhos. Tudo que eu queria era não chamar atenção, mas isso é tudo que a heterocromia proporciona.

Meu estomago reclama, ouço os roncares da fome, portanto, lavo as mãos, amarro parte do meu cabelo, já que os cabelos de baixo não alcançavam meu velho scrunchie vermelho.

Abro a portinha do armário de madeira e puxo um saco de arroz que está pela metade, coloco dois copos, refogo a panela, coloco outra com água para esquentar e o tempo que o arroz fica pronto é o mesmo que uso para fritar uns filés de frango. Deixei o feijão para lá, demora muito e meu caso é urgente.

Ao sentar na mesma mesinha velha, meu pai abre a porta da sala que não tinha divisória para a cozinha, ele dá dois passos para dentro, fecha a porta e tropeça na minha mochila. Meu coração já bate forte e eu fico aflita.

— Guarda essa mochila! — grita ele, com acréscimo de alguns palavrões, e arremessa o objeto na minha direção.

A mochila cai, abrindo-se, fazendo meu caderno deslizar bem para os meus pés. Eu engulo seco a comida que mal mastiguei, ele continua me olhando com o rosto e o olhar vermelho, passando reto para o quarto dele e fechando a porta. Percebo minha mão tremer ao levar a segunda garfada em minha boca e, na terceira garfada, meu nariz já estava congestionado e meu rosto molhado de lágrimas, isso me afeta tanto.

Akemi entra em casa em seguida, limpo minhas lágrimas, fungo o nariz, e ela vem em minha direção.

— Eu o ouvi chegar. Está tudo bem. — Ela se aproximou de mim e me abraçou enquanto eu terminava de comer.

— Akemi, preciso de uma mochila nova.

— Tudo bem, podemos comprar.

— E minha amiga me chamou para ir para uma festinha.

— Tudo bem. Não chegue tarde.

— Não chegarei.

A Menina das LuvasOnde histórias criam vida. Descubra agora