A livraria

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No meu aniversário eu ganhei um diário de presente, me perguntei o porquê entregar isso a uma criança, seria mais útil um caderno de desenhos já que crianças normalmente não podem ter privacidade. Sério, é algo que pode parecer extremamente frustrante, mas eu me acostumei a ter tudo vasculhado e emoções reprimidas. No fim, entendo que querem apenas me proteger, mesmo que eu ache que 14 anos não é uma idade para se referir a criança. Sobre as emoções? Eu não posso sentir raiva, pois estarei demostrando ingratidão e rebeldia, mas eu também não posso ficar triste, tenho que justificar cada coisinha e, mesmo que eu tente explicar, minha situação sempre vai ser comparada a drama e exagero, então eu aprendi a guardar tudo e engolir o choro, tenho que estar sempre feliz. E não é difícil, eu não sou uma criança triste, sou uma pessoa grata e animada, porém, é natural que todos chorem, que as pessoas sintam todos os sentimentos... Menos eu. Mas sou uma boa criança, aprendi a não sufocar os que estão ao meu redor com reclamações e sempre atender aos chamados, precisa de ajuda? Ajudar é meu sobrenome, eu amo ajudar os outros, amo fazer os demais felizes, essa frase não contém ironia.

Após tanto ajudar as pessoas, fazer direitinho as tarefas de casa que parecem nunca ter fim, tirar boas notas e nunca espalhar energias negativas com choros e raiva. Me resta um tempo no meu dia para ser eu, para me sentir livre e à vontade. Na Rua Canarinho, no centro da cidade, na esquina de um cruzamento, tem uma pequena livraria que minha mãe me apresentou. Sua estrutura não mudou desde o primeiro dia de inauguração. Minha mãe lembra que, desde quando era pequena, a construção já estava lá. Desde aqueles tempos, é claro que as cores dos cartazes e do letreiro desbotaram, as prateleiras ficaram gastas e todo o lugar tinha cheiro de guarda-roupa de avó, apenas o balcão foi trocado. Certo, parece uma espelunca, mas as donas não deixavam um livro sequer fora do lugar e nem um grão de areia no recanto do encontro das paredes. Eu amava passar um tempo lá, as funcionárias já me conheciam e gostavam de mim. Eu sempre ia na mesma sala, um pequeno cômodo de 6 metros quadrados, no chão um carpete antigo de cor de sangue com desenhos abstratos de cores amarelo e preto, cinco puffs coloridos que formavam um semicírculo no centro da sala, uma janela na qual os raios solares iluminavam o local, o que tornava necessário que a lâmpada no teto se acendesse somente à noite, também tinha duas estantes de madeira uma ao lado da outra, sua pintura amarela estava meio gasta, mas estavam lotadas de livros, na última parede que não descrevi estavam prateleiras com livros, a mais baixa estava tão perto do chão que eu precisava me agachar para ver os livros. Ah, acha que eu só descrevi três paredes? Lembre-se da porta por onde entrei. Esse cômodo ficava em frente ao balcão da recepção, a porta estava sempre aberta, então qualquer dúvida que eu tivesse, as moças da recepção estavam prontas para me auxiliar. Minha mãe, que sempre ia comigo, gostava de conversar com elas enquanto eu mergulhava nas histórias, era meu lugar de conforto, um lugar onde eu não sofria pressão, onde não precisava atender expectativas ou segurar uma emoção sequer, eu só precisava ler e sentir.

Com o tempo minha mãe me deixou ir só, sem que eu precisasse insistir (passei um mês insistindo). Eu morava no bairro ao lado, mas contanto que eu não voltasse tarde não teria problema algum, era seguro... Eu acho... Eram só algumas quadras após a escola, depois da praça do centro da cidade, com aquela fonte que sempre jorrava água e atraía os pombos, passando pelas ruas movimentadas que os motoristas sempre pareciam furiosos, e eu espero que eu demore a crescer e que nunca me torne um adulto amargurado como eles, ao lado de uma das melhores lanchonetes que já comi e que o salgado custava apenas dois reais, depois desse trajeto, eu estava lá, no meu mundo, pronto para ser recebido pela senhora Juju e a senhorita Alfredesvândia. Eu me jogava num puff e ficava horas vivendo aventuras, viajando, conhecendo novas pessoas, rindo, chorando... Tudo que eu desejava era aquilo, era tudo que eu precisava e queria.

Para o diário que nunca escreviOnde histórias criam vida. Descubra agora