2. Luíza

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Mais um dia exaustastiva aqui no Hospital Nova Esperança (HNE). A demanda de atendimentos aumentou quase que 51% ao longo desses 3 anos após a pandemia da COVID-19. Muitas pessoas adoecendo rapidamente, tento fazer o impossível do possível a cada dia para salvar vidas. A sociedade supõem que profissionais da saúde, não sentem pela perda dos entes queridos deles. Se soubessem a quantidade de vezes que tive que sair correndo da sala de cirurgia por não ter sido bem sucedida, ao ponto de chorar de soluçar no meu canto. Tenho certeza que não diriam barbaridades das quais já ouvi e creio que quem trabalha nessa área, sabe muito bem do que estou dizendo.
Se eu pudesse tomar as dores e os sofrimentos de cada um de meus pacientes, assim o faria.
Mas infelizmente a vida não é da forma como a desejamos.
Estou aguardando para ser chamada na reunião geral do hospital, pois hoje iremos dar boas vindas aos novos integrantes da equipe. Pego meu celular e decido analisar alguns dos dados de ambos enquanto me aproximo da sala. Vejo pelo quadrado de vidro da porta os dois enquanto leio e comparo as informações:

Aline Siqueira, aparentemente deve ter perto dos 33 anos de idade, cabelo cacheado castanho escuro com poucas mechas vermelhas, olhos verde água e puxados nos cantos inferiores, diria que deve ter por volta de 1,56 de altura.

Jonas Nascimento, ao mesmo tempo em que aparenta ter 29 anos, daria uns 36, cabelo curto com mechas platinadas, aproximadamente 1,72 de altura, óculos redondo e olhos amendoados, quase cor de duas avelãs.

Ambos são recém formados em medicina, mas em áreas distintas: pediatria pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e cardiologia pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo). Quando leio a palavra pediatria, sinto um aperto no peito, uma dor do que poderia ter sido se tivesse optado pelo o meu sonho: ser pediatra para lidar com o que mais amo. Crianças.

Desde muito cedo, cuidei de todos os meus 3 primos e meus dois irmãos mais novos. Tia Fernanda era uma prostituta, sempre fazia questão de levar homens para a nossa casa. Mal tinha espaço para nós, com 3 cômodas de 80m², sala, cozinha e banheiro. Certa vez, Vicente, o filho do meio dela de apenas 6 anos, tinha acordado por ter tido um pesadelo. Era algo de costume que ocorria antes dela entrar para essa vida. Ele veio até meu quarto que era compartilhado com meus dois irmãos; a única que tinha essa exclusividade para ter as coisas só dela, era a Fernanda. Vicente, com seus olhinhos cor de mel e seus cachinhos dourados, questionou-me:

"– Lulu, o que está acontecendo com a mamãe? Ela está gritando muito, vai ajudar ela!!" Disse-me com olhos arregalados e marejados de preocupação com sua mãe.

Fiquei em saia justa, sem saber pra onde fugir daquela situação, pois não era algo que dizia ao meu respeito e sei que trariam uma grande discórdia, além de agressões tanto físicas, quanto verbais e psicológicas. A única reação que consegui ter depois de alguns segundos diante do desespero de Vicente, tive que mentir.

"– Tia Fernanda deve ter visto uma barata, vou lá para ajudar a sua mãe a matar ela. Assim você poderá dormir tranquilo, tá bom?" Disse-lhe, segurando seu rosto e enxugando suas lágrimas com o polegar e dando-lhe uma toalha pequena de pano para assoar o nariz que estava acima da cômoda.
Depois de ir se acalmando aos poucos, ele respirou fundo e encarou-me, desviou o olhar de mim e começou a visualizar as minhas bolsas amontoadas em um canto, como se quisesse dizer algo que estava guardando a muito tempo. E que não deveria ser dito.

"– Prima, você vai ir embora? Igual ao papai?" Disse, enquanto me fitava, ansioso para uma resposta que talvez mudaria a sua vida.

"– Tenho que ir, não aguento mais ficar aqui vendo o tanto de erros que tem aqui. Mas isso não significa que não amo vocês, eu vou voltar para tirar vocês daqui e dar a vida e a educação que vocês e meus irmãos merecem, ouviu?"

"– Promete de dedinho?" Disse-me olhando com entusiasmo para mim.

"– Prometo!" Disse-lhe, enquanto sorria e unia nossos dedos mindinhos, não querendo os soltar nunca, mas já era tarde demais. Coloquei-o para dormir, depois dele ter entrado em sono profundo, fui diretamente no quarto da Fernanda. Houve uma discussão terrível, como havia imaginado. Expulsou eu e meus irmãos, mas nossos primos quiseram vir conosco, deixei todos eles na casa de nossos avós, que morava a 4 ruas depois da nossa. Expliquei tudo a minha vó Madalena e disse que já havia conseguido um lugar para ficar com a minha amiga Samanta.

Naquela época, não pensei no modo como as minhas palavras  após esse questionamento feito por Vicente, o afetariam. Não passou pela minha cabeça a dor que eles sentiriam ao ver quem eles tinham como porto seguro, partir. Hoje em dia reconheço o peso e gostaria de voltar no tempo para pedir perdão por ter os deixados. Mas precisava conseguir terminar o meu último ano no Ensino Médio para ingressar na faculdade. Foram anos de dedicação e muita luta para conseguir o que conquistei por mérito meu. Meus avós Madalena e Francisco tinham boas condições para que não passassem de novo pelo o que aconteceu naquela casa.
Um novo recomeço estava por vir.
Durante toda essa reflexão, já havia entrado na sala de reuniões e agora estamos todos aguardando o chefe Daniel Hamilton e alguns membros restantes da equipe. Do nada ouço três batidas na porta, quando me viro, vejo ele entrando com seus 2 seguranças.

" – Bom dia pessoal."

E falando no diabo...

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