I.

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Rita e Augusto estavam a toda velocidade na estrada de terra, os recém casados em seu carro vermelho sangue avançaram diante da noite umbrosa. A planície escura se estendia até onde se via. Os luminares distantes estavam, sarapintando à terra como coágulos, sendo cada um, um assentamento de pessoas já mortas em futuros distantes. O útero onde cada um se gerou de certa forma já é a primeira tumba da vida de alguém, pois a única condição inevitável da vida é a morte. Cada metrópole, cada cidadezinha, cada lugarejo, cada pontinho de luz e de vida um dia vai se apagar, restando somente as ruínas e a escuridão no horizonte terrestre. Estava um gato no meio da estrada, não era um gato qualquer, era muito mais do que parecia, era semelhante dos antigos gatos egípcios, era tão escuro quanto a própria noite. Seus olhos verdes guardavam o peso da vida, que é a ausência da morte momentânea, mas a estigma da morte futura. Nunca vi, nem esculpido em pedra, a maldição e a benção que se pode ver nos olhos dos seres viventes. O pneu do carro o esmagou tirando o brilho de seus olhos, quebrando todos seus ossinhos de gato, sujando o barro da estrada com sangue. Seus poucos amigos e familiares, penaram e choraram; mas apesar da ausência que fica, a vida segue. Logo os que o guardavam nas suas memórias e no vazio impreenchível aprenderam a viver com a dor, que nunca deixou de existir. E quando a vida se reiventou para ele poder viver no coração daqueles que ele amava, estes também foram morrendo um a um. Sem ninguém para se lembrar dele, ele morreu de novo, dessa vez nos braços do esquecimento. O carro vermelho seguiu noite adentro chegando finalmente ao hospital, o motivo da velocidade era o parto iminente de Rita, chegaram os pais ao fim, emocionados, assustados, esperançosos. Nathaniel nasceu no dia da morte e seus olhos verdes guardavam o peso da vida. Ele cresceu rápido. E já no meio da sua juventude era um rapaz esperto, pálido, introspectivo e tinha cabelos tão escuros quanto a noite. Seus olhos já estavam perdendo o brilho aos pouquinhos, eles já revelavam a consciência de existir, olhos calados, que guardavam secretamente seus amores e desgostos. Tantas cicatrizes tinha sua alma que ela sangrava o espírito pelos rasgos como se tentasse fugir ao corpo, um desses buracos por onde lhe fugia a vida eram os olhos. Nunca vi, nem pintado a óleo, a maldição e a benção que se pode ver nos olhos dos seres viventes. Seus semelhantes fizeram de sua vida um inferno, bullying dos garotos, indiferença das garotas, promessas vazias dos adultos, Nathaniel sofria, sua vida se fez estrada de barro cheia de pedras e curvas, ele se fez homem feito de barro também. O barro é humano. Do pó ao pó. Ele foi atropelado pelas palavras, pela frieza de seus iguais, gritou em silêncio e agonizou dentro de si mesmo, para morrer na mesma estrada suja de sangue de gato, perto de uma árvore muito viva e exuberante, Nathaniel se enforcou com dezesseis anos. Viveu como humano e morreu mais humano ainda, pois a única condição inevitável da vida é a morte. A segunda tumba de Nathaniel foi o cemitério de sua própria cidade, num caixão de madeira ornado com jacintos roxos e rosas vermelhas. Ele mergulhou na inexistência, deixando somente a tristeza e um vazio na vida de seus familiares e poucos amigos. E quando a vida se reiventou para ele poder viver no coração daqueles que ele amava, estes também foram morrendo um a um. Sem ninguém para se lembrar dele, ele morreu de novo, dessa vez nos braços do esquecimento. Nathaniel se fez gato preto. Então se por algum momento o leitor suspeitar que a vida de uma pessoa está lhe fugindo pelos olhos, dê nela um abraço forte, chore com ela, alegre-a, aproveite que estão vivos juntos, cuidado para não a atropelar com palavras descuidadas, costure sua alma rasgada urgentemente. Para assim adiar o inevitável, atrasar a escuridão dos luminares que ameaça a tudo e a todos que vivem, a morte.

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O gato preto na estrada de barro - Gabriel Moreira Rolim Onde histórias criam vida. Descubra agora