Naquele canto esquecido da cidade, onde as sombras pareciam ter vida própria e as casas rangiam em sincronia com os sussurros do vento, nasceu Lili, a gata preta. Sua mãe, uma gata malhada com olhos que refletiam o brilho de uma lua perversa, deu à luz em um beco escuro, cercada por restos de sonhos quebrados e pedaços de lembranças há muito esquecidas.
Lili abriu os olhos na escuridão, e o mundo à sua volta parecia mais estranho do que qualquer coisa que pudesse ser imaginada. Havia algo de sinistro naquela noite de outono. A lua cheia pairava acima como um olho vigilante, derramando sua luz prateada sobre as ruas desertas, e o vento frio carregava consigo um lamento distante, como se a própria cidade estivesse chorando.
A mãe de Lili, conhecida como Senhora das Sombras pelos gatos que viviam à margem da sociedade humana, tinha um passado que se estendia como um tapete de nevoeiro, escondendo segredos e mentiras. Ela era uma gata de rua, livre e selvagem, que nunca se importou em descobrir quem era o pai dos seus filhotes. Para ela, a vida era uma série de aventuras noturnas, encontros fugazes e perigos constantes. Mas Lili, desde o momento em que sentiu o primeiro frio da noite em sua pele negra como a treva, sabia que havia algo diferente nela, algo que a separava dos outros.
Lili não permaneceu nas ruas por muito tempo. Não, o destino tinha planos muito mais elaborados para essa criatura enigmática. Em uma noite especialmente escura, quando as estrelas pareciam se esconder atrás de cortinas de nuvens, uma mulher de cabelos cor de cinza a encontrou. Essa mulher, dona de uma casa antiga que parecia viver e respirar por conta própria, decidiu levar a pequena Lili para casa.
O lugar, para qualquer outro ser, seria assustador. A casa era uma mistura de madeira velha e pedras desgastadas, com gárgulas esculpidas que pareciam rir dos visitantes. Mas para Lili, era um lar, um refúgio das trevas exteriores. A mulher, conhecida por todos como Madame Violeta, tinha um fascínio pelo estranho e pelo macabro, e assim que viu Lili, soube que a gata era tão peculiar quanto sua própria casa.
Lili se adaptou rapidamente ao novo ambiente. Ela passava os dias descansando em janelas empoeiradas, observando o mundo lá fora, e as noites explorando cada canto sombrio da casa. Havia algo nos corredores estreitos e nos quartos mal iluminados que a atraía. Era como se as paredes sussurrassem segredos antigos, chamando-a para descobrir seus mistérios.
Quando a lua cheia voltou a aparecer no céu, Lili sentiu um formigamento em suas patas. Algo estava despertando dentro dela, uma necessidade irresistível de sair, de explorar. Naquela noite, quando Madame Violeta finalmente adormeceu em sua poltrona cercada por velas derretidas e livros empoeirados, Lili deslizou para fora pela janela.
O mundo noturno era completamente diferente. As sombras pareciam ganhar vida, movendo-se de maneira imprevisível. As árvores rangiam como velhos fantasmas, e as luzes das poucas casas que ainda estavam acesas cintilavam como olhos vigilantes. Lili caminhou pelas ruas vazias, suas patas não fazendo som no pavimento frio.
Foi quando ela encontrou um grupo de gatos reunidos em um antigo cemitério, onde as lápides estavam tortas e cobertas de musgo. Esses gatos não eram comuns; eram gatos que conheciam a noite tão bem quanto Lili. Suas pelagens eram de cores que desafiavam a realidade, seus olhos brilhavam com uma luz própria, e eles pareciam estar aguardando algo, ou alguém.
Lili se aproximou, e os gatos a receberam com olhares que misturavam curiosidade e respeito. Eles se chamavam os Guardiões da Noite, e cada um deles tinha uma história mais estranha que a anterior. Havia uma gata que havia perdido suas nove vidas, mas de alguma forma continuava vagando, e um gato que podia se tornar invisível sob a luz da lua. Eles disseram a Lili que ela tinha sido escolhida para uma missão.
Os Guardiões da Noite falaram sobre um antigo rito, um ritual que precisava ser realizado durante a Lua Sangrenta, que estava prestes a nascer. Esse ritual, segundo eles, deveria ser realizado por alguém cuja linhagem estivesse profundamente enraizada nas sombras, alguém como Lili.
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As Crônicas de Lili, a gata preta
Short StoryEra uma vez, em uma pequena cidade onde o vento soprava segredos e as sombras dançavam sob a luz prateada da lua, uma gata chamada Lili. Lili não era uma gata comum. Sua pelagem era negra como a escuridão mais profunda, e seus olhos, misteriosos, pa...