Fumaças festivas emergiram do estacionamento, manchado com todos os tons de tinta guache com os quais veteranos e calouros do internato se pintavam. Sentado na calçada, com a minha cabeça ao lado de vários joelhos ilesos, tentava não deixar tão sério o meu rosto pintado de gatinho. Mas era como se a gravidade fosse mais severa com as minhas bochechas do que com as de qualquer um.
— Quem pintou você? — Disse a voz que descia suavemente com a luz solar borrada que atravessava alguns balões verdes e vermelhos.
— Não me lembro. Acho que foi aquela de choker.
Não ouvi mais nada depois que lhe respondi. Acreditei que ela simplesmente tinha ido atrás da possível grande maquiadora, mas um pensamento veloz se precipitou em sugerir que talvez o meu tom de voz pudesse ter sido seco demais. Meu coração desacelerou, e teria se acalmado mais caso ela não tivesse sentado ao meu lado, abrupta tal como o pouso de um pássaro curioso.
— Será que ela me pinta também? — Ela me disse, jogando pra trás os cachos que umedeciam as margaridas do seu vestido rosado.
— Ela tá ali pra isso. — Disse-lhe, soando involuntariamente rude, mesmo com o sorriso honesto que dei, acompanhando a fala. E ela também sorriu, como quem descobre agradavelmente que está perdida.
— Não sei. Ela parece cansada demais.
— Talvez pra uma tatuagem, não pra desenhar borboletas na sua bochecha.
— Aaah, qual é! Não sou esse tipo de garota. Eu pediria uma barata ou uma lagartixa.
— Essa eu quero ver!
— Onde é que tu vai? — Disse-me, segurando meu braço para que eu não me levantasse.
— Desistiu?
— Ah, a queimada já vai começar, poh! Não quero manchar meu vestido. Acho que o meu nome e o nome do meu curso... tipo, aqui nos meus braços, já é o suficiente.
— Mais uma colega da história?
— Não. Vou me preparar pra cursar jornalismo.
Alí, com um sorriso amarrado, lembrei-me de uma piada.
— Sabe o que dizem sobre o jornalismo?
— Ih! Melhor nem saber. A galera odeia a gente.
— Verdade. Cuidado com as boladas.
— Não vai jogar?
— Não.
— Que desperdício! Você é o mais alto. O que foi, a mão?
— Ah, isso não é nada. Só uma cicatriz. Inclusive vai clarear bastante ainda. Talvez não suma, mas vai melhorar, e vai clarear, vai clarear.
— Certo. Mas como conseguiu?
— Sou distraído.
Tínhamos aulas em comum todas as terças e quintas. Eu a via andando sozinha no pátio ensolarado que dava pra janela da minha sala. Por vezes não queria vê-la. Tinha pressa. E também notava em sua fala perdida que tentava manter meu interesse, esse sempre abalado por seus comentários sobre o quanto o arroz do restaurante estava papado, ou do perigo da baixa iluminação da saída.
— Mas você nem estuda de noite, Irene. — Disse-lhe na fila do restaurante.
— Ah, talvez eu estude à noite algum dia.
Escondida, ela colava figurinhas de A Turma do Charlie Brown ao lado das datas no caderno, e achava que seus coturnos não combinavam com os vestidos floridos. Contudo não demorou a perceber que nada disso lhe daria outras atenções, e que suportar as minhas divagações incoerentes e redundantes cobrava seu preço.
Se sentava alguém ao seu lado, seu olhar fugia. Petrificava-se. Até que aprendeu a falar sem ver, e depois a ver sem falar, e depois a falar e encarar, e depois a conversar e encarar menos. E para ela a coragem se tornou finalmente aquilo que se vê quando todos os ombros estão baixos, o barulho está lá fora e ninguém espera nada de você: vocês se observam, entendendo aquilo que pode ser feito, e não fazem. Porque essa inação é a conversa. E Irene, teve coragem.
Num dos bancos do pátio, numa quarta-feira qualquer, ela teve coragem. Com alguns olhos que às vezes riem em minha direção, vi os dela, quase escondidos, envergonhados. Mas estava feito. Vitória! Ela passou de fase. E eu não me curvei, como sempre. Encaro com desprezo, mas sempre parece raiva. Os olhos felizes se perdem, espalham-se no ar, e isso me assusta. Forcei o meu foco para o texto que havia esquecido. Os risos voltam. Minha letra é torta. E a merda das léias rubras atrás das vidraças era mais inerte que o meu tronco altivo, aprumado num suéter folgado. Eles eram uma pergunta irônica, eu uma resposta horrível.
E assim sendo, naquela noite, eu estaria longe das ilhas de cabeças que se formam em salas com led ou neon, ou na rua — que é o fim de ambas —. Então me agradei com cautela em ver Irene cada dia mais distante, pingando em rodas de conversa até encontrar a sua favorita. Seu sorriso era longo. Meu caminho era longo — e como longo, havia quem dissesse que não poderia ser feliz. Mas eu apenas conferia para qual lado a minha sombra se deitava e a seguia.
O clube de xadrez ficava movimentado durante o inverno. Bom motivo para evitar de cruzar com ela nos corredores, mas o pensamento me traía. Quase bati uma pra ela uma vez, no chuveiro. Mas a lembrança daquele seu olhar de julgamento e escárnio a afastou antes da conclusão que tornaria a minha vergonha irreversível. Assim, por algumas semanas, o sol se arrastou em silêncio atrás de nós. Parando, por um breve momento de alguma manhã, quando minhas costas foram cutucadas.
— Filão, né? — Disse-me Irene. Algo que precisei tirar os fones para ouvir.
— Demais! Quase o tempo de eu mesmo ter que cozinhar.
— Boa! Você continua um palhacinho, né?!
— Contin... Desculpa, a gente se conhece? — Eu sei. Pareceu desnecessário, mas eu precisava. Assim como um verme precisa rastejar.
— Coé! Te conheci na confraternização dos calouros, meu primeiro dia. Irene!
— Tenho uma vaga lembrança. Relances só. Desculpa.
— Poh! Me lembro que tu me falou da sua cicatriz. — Disse Irene, olhando pra minha mão. — Que ia diminuir e clarear, acho.
— Olha! Então eu estava certo. Tá vendo? Quase nem dá pra ver.
— Verdade... — Disse Irene, baixando discretamente a cabeça para mergulhar o olhar na tela do celular.
Quase me animei para finalizar a piada a respeito do jornalismo. Mas, caso o fizesse, não poderia continuar simulando maiores esquecimentos. Mas aqui não há o que me impeça disso: sabe o que se diz sobre o jornalismo? Que ele te leva a todas as partes, com a condição de que você o abandone a tempo.