Lar e Pátria

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"A pátria é o espaço onde nos encontramos como parte de um todo, enquanto o lar é o lugar onde nos descobrimos como indivíduos."


Os pássaros gorjeiam de forma livre e alegre pelo céu de Campos, na província de Santa Paulina. Eles deslizam sobre os montes ondulantes, cujos aromas envolventes de café fresco e recém-torrado misturam-se com o doce perfume das frutas tropicais. As barracas da feira vibram com cores vivas e cheiros intensos de frutas variadas - mangas maduras, abacaxis dourados e laranjas suculentas, todas promessas de sabor e frescor.

Nos telhados cobertos de telhas vermelhas, gatos ágeis saltitam de uma beirada para outra, atravessando varandas de ferro forjado e deslizando por becos estreitos e sombrios. Suas presas? Ratões que se aventuram em busca de migalhas. As ruas fervilham com a presença dos felinos, que em sua busca incansável por alimento cruzam o caminho de bêbados adormecidos e caminhantes matutinos.

Os sinos do campanário da igreja soam com uma estridência que ecoa pelas praças, despertando os cães de rua de seus sonos inquietos e fazendo-os correr pelas vielas à procura de abrigo. O vapor das cozinhas e das pequenas fábricas da cidade começa a subir, misturando-se com o ar fresco da manhã. O dia se desdobra lentamente em Campos, onde a calma aparente esconde uma rica tapeçaria de vida e movimento, prometendo mais uma jornada em sua pacata e encantadora rotina.

Em uma rua de certa elegância, onde a riqueza se fazia presente, mas ainda sem o peso da nobreza tradicional, a rotina matinal se desenrolava de forma meticulosa. As residências e comércios da via ostentavam fachadas imponentes, mas discretas, com seus ornamentos em ferro e janelas amplas que deixavam entrever cortinas rendadas. Por essa rua, distribuidores de jornais percorriam suas rotas habituais, entregando as edições matinais a clientes ávidos por notícias e fofocas da sociedade.

Entre esses estabelecimentos, destacava-se a Casa de Moda da Senhorita Jeanne, um elegante refúgio de luxo e bom gosto para as famílias abastadas da cidade. A loja, com suas vitrines adornadas por tecidos finos, chapéus parisienses e vestidos feitos à mão, era um destino procurado por aquelas que aspiravam ao refinamento da alta sociedade, ainda que não tivessem alcançado a exclusividade da nobreza local.

Logo ao amanhecer, a diligente Maria Antônia, a faz-tudo da loja, uma jovem de espírito vivo e olhar atento, já estava de prontidão. Conhecida por sua eficiência e discrição, ela cuidava de tudo com um zelo que encantava tanto clientes quanto a própria Senhorita Jeanne. Naquela manhã, como de costume, Maria se apressou em receber o jornal recém-chegado, ansiosa para entregá-lo à Madame Jeanne, que sempre aguardava as últimas notícias com um misto de curiosidade e expectativa.

Enquanto caminhava pelas galerias da loja, passando por manequins vestidos com as últimas tendências da moda europeia e prateleiras repletas de acessórios, Maria sentia o leve aroma de perfumes importados que permeava o ar. Ao entrar no gabinete da proprietária, ela entregou o jornal com uma leve reverência, sabendo que, entre as páginas daquele periódico, Madame Jeanne encontraria não apenas as notícias do dia, mas também os sussurros e os movimentos da sociedade que tanto ambicionava conquistar.

Distante do bulício do centro de Campos, no coração de uma vasta propriedade rural, erguia-se a magnífica residência dos Almeida e Silva. A casa de campo, quase um palacete, destacava-se pela sua grandiosidade e imponência. Suas paredes brancas, ornadas com detalhes em pedra esculpida, reluziam à luz da manhã, refletindo o esplendor de uma família abastada. Os vastos jardins, cuidados meticulosamente, eram entrecortados por alamedas de palmeiras imperiais que conduziam à entrada principal, onde uma série de escravos élficos bem vestidos se apressavam em suas tarefas diárias.

Entre eles, destacava-se um escravo, trajando um uniforme impecável, que avançava pelo caminho de pedras com o jornal dobrado cuidadosamente em mãos. Ao se aproximar da entrada principal, ele vislumbrava o vaivém frenético de outros escravos, que carregavam cestas de frutas frescas, poliam as ricas madeiras da mobília ou preparavam a grande casa para mais um dia de esplendor. A vida naquela propriedade pulsava com um ritmo próprio, ditado pelas necessidades e caprichos da família Almeida e Silva.

Dentro da casa, Joaquim, o primogênito, acabava de retornar de Lontres, onde passara anos estudando administração e literatura nas melhores instituições Westérias. Seu retorno era aguardado com grande expectativa pela família, especialmente por seu pai, o poderoso coronel Almeida. Joaquim, ainda carregando o frescor das ideias europeias, atravessou o vasto saguão de mármore, admirando as tapeçarias e os lustres de cristal que adornavam o espaço, reminiscências do poder e da riqueza de sua linhagem.

Ao avistar o escravo trazendo o jornal, Joaquim sentiu um misto de ansiedade e curiosidade. Ansiava por rever sua família, mas também estava impaciente para ler as notícias, ansioso para entender o que havia mudado em Bralha durante sua ausência. O jornal, com suas páginas cheias de novidades e intrigas, seria seu primeiro vislumbre do que o aguardava na sociedade que ele havia deixado para trás, e agora retornava para enfrentar.

Não muito longe dali, nos vastos campos de café que se estendiam até onde a vista alcançava, centenas de escravos trabalhavam incansavelmente sob o sol implacável. As plantações, com seus pés de café verdejantes e robustos, eram o sustento da riqueza da família Almeida e Silva, e a cada safra, a expectativa de lucro crescia. Entre os trabalhadores, destacava-se um escravo elfo cuja determinação era evidente no brilho que ainda reluzia em seus olhos, algo raro em meio àqueles que já haviam sido consumidos pela exaustão e pela desesperança.

Esse homem, conhecido entre seus companheiros apenas como Pêpo, mantinha-se firme em seu propósito, mesmo com as mãos calejadas e a pele marcada pelo trabalho árduo. Cada vez que seus dedos habilidosos colhiam os frutos do café, sua mente estava longe, revisitando constantemente o plano meticuloso que havia elaborado para alcançar a liberdade. Seus pensamentos viajavam para além dos campos, para além das senzalas, onde os sussurros da liberdade eram abafados pelo medo.

Enquanto os outros escravos trabalhavam mecanicamente, suas mentes entorpecidas pela rotina brutal, Pedro mantinha viva a chama da esperança. Ele sabia que sua liberdade não seria entregue de bandeja, mas sim conquistada com astúcia e coragem. E assim, entre o aroma doce-amargo das cerejas de café e o calor abrasador do sol, ele se preparava silenciosamente para o dia em que finalmente deixaria para trás aquelas terras, rumo a um futuro incerto, mas livre.

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