Uníssono

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When we were made
It was no accident
We were tangled up like branches in a flood
I come as a blade
A sacred guardian
So you keep me sharp and test my worth in blood?
~ Chokehold

Tudo doía.

Tudo queimava. Carne, músculos e ossos em combustão.

Meu corpo, não mais meu, todo do fogo que me consumia de dentro pra fora, começando por minhas veias, indo de encontro a todo o resto. Se estivesse sob o controle do meu corpo, estaria arranhando minha pele, arrancando-a de mim em busca de liberdade da textura ardente que me aprisionava.

— Socorro! — gritei — Tira isso de mim!

— Vai passar em breve.

Ouvi ao fundo, meus gritos encobrindo a delicadeza da voz dele. Meus olhos, vermelho, ardendo. Brasa pura, me impedindo de vê-lo.

— Me mata!

O riso sereno chegou aos meus ouvidos.

— Eu acabei de fazer.

— De verdade. Acaba com tudo de uma vez. — implorei, uma vez mais. Minhas unhas raspando o piso, levantando-as e soltando da carne. Um alívio imediato.

Me despedaçar melhorava.

A morte era melhor, mas até isso o fogo tomava de mim.

— Está queimando...

— Shh... Vai passar.

Em meio a fornalha que me tornava, sua mão chegou como bálsamo. Não interrompia nada, mas acalmava por onde passava. E passeava por minhas coxas, subindo e escondendo-se por debaixo da minha blusa. Me tocando com gentileza. Um cuidado que toda a cena ao meu redor não tinha tido o privilégio de receber.

Em desespero, piscava sem parar tentando dissipar a ardência e encontrar seu rosto. Não conseguia nenhuma das coisas. Esperava o momento em que as órbitas explodiriam no calor e suas mãos, tão presentes em meu corpo, se mostrariam não ser nada além de um membro fantasma. Nunca esteve ali.

Talvez Kelvin nunca tivesse existido.
Talvez eu já estivesse morto.
No inferno.
E esse era o meu castigo eterno.

Um som estridente cortou o ar, invadindo meus ouvidos. Era eu, minha voz. Um grito aflito, se esticando e arranhando minha garganta procurando lugar para fora de mim, alongando as cordas vocais. E então seu rosto, resplandecente. Outra vez o anjo que um dia achei que era, embora sua face estivesse coberta com meu sangue.

— Vem... — precisava tocá-lo — Vem aqui...

E ele se aproximou, como uma miragem. Sem perder o foco. Seu corpo por cima do meu, os dourados dos olhos tão brilhantes, certeza tinham sido substituídos por ouro líquido. Tão lindos e mortais. Preciosos. Os lábios pintados de vermelho, entreabertos e exibindo as presas. Em breve teria uma igual.

Em silêncio, ele tomou uma das minhas mãos colocando-a sobre suas bochechas, movimentando o rosto, se dando carinho. Me perfurando com o olhar, beijou meu pulso dissipando parte do calor que me consumia, me distraindo da dor com seus olhos, escorregando a palma da minha mão por seu corpo. Por entre o espaço aberto da camisa, espaço que ele criava, abrindo os botões.

— Me toca, se distrai em mim...

— Eu preciso de mais.

— Mais de que? De mim...?

Confirmei atormentado, como um viciado em abstinência finalmente recebendo uma dose do que tanto desejou, sentindo minha boca formigar de imediato junto a dele. Muito mais sensível, a pele fina dos meus lábios recebiam choques elétricos sendo sugados para dentro da boca dele. Recebia seu beijo ganhando vida, curiosamente, depois de entregar a minha à ele. O gosto do sangue rodopiando em nossa língua, indo da sua para minha, em um ritmo cadenciado. Um beijo lento, embora me sentisse beijando-o de forma desesperada. Buscando meu ar nele, como se só me mantivesse vivo se fosse através dele. O que de fato acabava por ser.

UNÍSSONOWhere stories live. Discover now