Os céus desabavam em desgosto no momento em que o corpo de Esme descansava sobre sua cama, quando ainda estava consciente, entretanto em um literal piscar de olhos, o ambiente familiar e real que era a sua residência se tornou algo que ela não podia compreender, quando fechou seus olhos ainda permanecia em seu quarto, mas quando os abriu, se encontrou em um domínio de espelhos. As superfícies frágeis formavam um casulo de espelhos, todos eles rodeando o ambiente de uma forma impecável e perfeitamente simétrica.
Todos os espelhos, tão perfeitos quanto cristais lapidados, pareciam apontar para um mesmo ponto em comum, as superfícies perfeitamente alinhadas com o objetivo de direcionar a luz refletida a um mesmo ponto, independentemente de sua posição, o espelho sempre parecia estar sendo cativado pelo mesmo local: o centro.p
No centro, em meio a todos aqueles espelhos, estava Esme, outrora de carne e osso, agora apresentava uma essência de energia, não passava de luz. Os espelhos, todos direcionados para a silhueta luminosa, refletiam a luz em uma concordância sublime, mantendo a luz consistente e aprisionada em meio aos espelhos.
Ela olhava a sua volta, percebendo a peculiaridade do reino refletor: todos aqueles espelhos refletiam luzes que eram divergentes entre si, as reflexões, por mais que fossem perfeitas e concordassem entre si em um ponto em comum, apresentavam diferentes silhuetas, eram todas diferentes entre si. Mesmo que aparentassem ser a mesma silhueta, no espelho abaixo de si, encontrava uma versão da dita forma energética, acima, encontrava outra versão, que era diferente, mas igual. Nenhuma delas parecia ser uma cópia, todas eram autênticas e diferentes, mesmo que, no fundo, eram exatamente a mesma silhueta.
Sentiu um calafrio percorrer sua espinha, quando subitamente olhou para um dos espelhos, e o que encontrou foi um espelho dilacerado, dotado de rachaduras e imperfeições. Já não era possível reconhecer a silhueta que ali estava, dando espaço unicamente a uma aberração refletida, os feixes de luz emitidos totalmente divergentes e sem ponto exato, não iam de encontro ao centro, aquele espelho estava sem rumo, maculado, corrompido e fragmentado, alguns estilhaços de vidro tênue estavam faltando, ausentes, viu que agora havia escuridão, além da luz se direcionar sem rumo exato algum, parte da luz fugia pelo espelho vazado pela ausência de seus fragmentos, o que criava a mais horrenda aberração de luz, que divergia do ambiente sublime e iluminado de uma maneira uniforme, as deformidades criavam o ápice da deformação refratária, mesmo que ao mesmo tempo, Esme soubesse que aquela silhueta refletida deveria ser uma versão de uma mesma silhueta, assim como todas as outras.
Ao olhar para seu “corpo”, notou que agora havia algo errado, parte do que deveria ser um de seus membros estava se dissolvendo, como se a luz estivesse se dissipando, notou que sua existência estava sendo apagada, roubada, quando olhou novamente para o espelho, entendeu a sua situação, os espelhos eram o que mantinha unida, a luz que os espelhos refletiam era a sua própria, e sua forma e consistência estava a mercê daqueles espelhos, amedrontada, sentiu seu âmago se dissipando lentamente, sua identidade se dissipando em meio aos feixes de luz que eram perdidos ou direcionados para o local incorreto, sentimento este que foi intensificado por um intenso tremor dentro do domínio, parte da luz estava fugindo, a pressão dentro do globo de espelhos aumentava, quando os espelhos próximos da mácula começaram a ser afetados, o som de vidro rachando ecoava pela realidade paralela, os estilhaços eram jogados para dentro, mas puxados para fora por uma força desconhecida, agora a sua essência estava sendo roubada por uma força desconhecida, juntamente aos espelhos que a mantinham, dos quais ela já não se lembrava com clareza.
Ao ver que lentamente tinha sua alma roubada de si, em um ato de desespero se lançou em direção aos espelhos que estavam rachando, todos eles acompanhavam seus movimentos, ajustando suas angulações, tentando de alguma forma manter a essência da garota que já de dissipava minimamente consistente, ao estar de frente com os espelhos que agora forneciam aberturas para o desconhecido por conta de estarem estilhaçados, sentiu a força puxando sua luz para si, quando finalmente viu a força que a puxava: um enorme buraco negro era o que estava fora do domínio de espelhos.
O dito buraco negro sugava e dominava toda matéria e energia que se aproximava de si, formando um brilho macabro de destruição em sua volta, Esme estava de frente para o abismo, em frente ao olho macabro do oblívio, o que causava calafrios e agonia em meio ao caos que observava, observava sua realidade desaparecendo e sendo destroçada pelas forças da estrela morta, enquanto ela mesma sentia sua essência sendo distorcida e tomada, o desespero pela perda de sua essência a tomava enquanto observava os estilhaços de vidros que estavam sendo quebrados sendo puxados.
Já não tinha escolha, concluiu que a fonte de tudo que estava acontecendo só podia ser aquele espelho quebrado, o único que ela não podia reconhecer a silhueta e o único que estava quebrado desde o início, sabia que ou era morte ou óbito em qualquer uma das situações, então em um ato de coragem tola, se lançou na perdição inevitável, determinada a buscar pelos estilhaços de vidro perdidos.
Ao se lançar no coração das trevas, sua essência era virada do avesso, buscava pelos estilhaços de matéria frágil enquanto girava e rodopiava em perdição, o buraco negro era como ela era para os espelhos, um ponto de atração forte, mesmo que a dualidade fosse nítida: o buraco negro era o caos e a desordem, que destruía e distorcia, já seu domínio de espelhos era a estrutura mais perfeita e sublime existente, que a criava e mantia consistente.
Vagou pelo buraco negro, em busca dos pedaços de vidro, mais especificamente os do primeiro espelho quebrado, era praticamente impossível encontrar a diferença entre os pedaços sozinhos, mas de alguma forma subliminar, Esme sabia quais pedaços recolher por puro instinto e intuição, agora nadava contras as fortes correntes do buraco negro, na esperança de que restaurar um único espelho, que foi o catalizador da desgraça, pudesse reerguer toda a dinastia que era dilacerada e destroçada.
Encarou o espelho, totalmente sem seu vidro, todo o vidro do espelho encontrava-se quebrado em um quebra cabeça e fora de sua moldura, Esme se perguntava qual de suas versões aquele espelho refletia, sempre havia pensado em como a realidade não passava de uma reflexão das suas próprias experiências, então concluiu que aquela deveria ser seu subconsciente, e a silhueta distorcida deveria ser uma versão sua, deveria ser ela mesma, a partir dos destroços do que ainda se lembrava, enquanto sentia o forte buraco negro a chamando de volta, lembrou da imagem distorcida e tentou a restituir, mas era em vão.
Ela não se lembrava, não podia identificar quem era aquela figura, estava lentamente se esquecendo de como eram todos os outros espelhos, sabia que não poderia reconstruí-los, pois já não se lembrava de como eles eram.
Até que percebeu, que aquela distorção era a memória da qual tanto quis fugir, ironicamente a memória que a fez entender como seus espelhos funcionavam, ela precisava se lembrar, a agonia rapidamente se espalhava pela sua essência, era praticamente morte certa, se não encarasse as memórias, perderia todos os espelhos, precisava encarar o único dos espelhos que não queria ver, em meio ao desespero e ao infortúnio, acabou sendo obrigada por si mesma a lembrar.
Milagrosamente conseguiu aos poucos encaixar os pedaços de vidro de forma uniforme, a força do buraco negro era inversamente proporcional ao estado daquele espelho, quanto mais restituído, mais fraca era a influência do buraco negro sobre o domínio, mas ao mesmo tempo, a grandeza da sua dor era diretamente proporcional ao estado do espelho, mesmo assim o reconstruiu aos poucos, a silhueta sendo lentamente reconstruída, pode então ver aos poucos a nuance de uma Esme dilacerada assim como o espelho, o dia em que seu coração se quebrou assim como vidro, o dia que entendeu que as pessoas estavam cegas pelas suas próprias experiências.
O dia foi mostrado aos poucos, o momento em que ouviu que não era quem a pessoa que ela queria queria, que não era o esperado, o dia que ela quebrou as expectativas de outra pessoa e o dia em que seu coração foi quebrado por Avery, quando ouviu em seus ouvidos o ecoar da quebra de contato, de coração, de expectativas e de laços que jurava ser fortes, o dia em que ela entendeu que todos só podiam ver espelhos de si mesmos, o dia em que entendeu que ela também só enxergava parte dela em tudo que via.
A dor era imensa, mas logo o buraco negro se tornou um buraco branco, ejetando todos os outros estilhaços, estilhaços esses que rasgavam a existência de Esme, enquanto davam sentido às antigas aberrações refratárias, as distorções e deformidades no reino foram reparadas, restituindo a essência luminosa que ali vivia, que agora se lembrava de todas as versões e de cada espelho, mesmo que todos parecessem iguais.
Quando se deu por conta, estava novamente em seu quarto, em frente a um baú que havia trancado a sete chaves, com todos os seus diários abertos, diários cujo conteúdo já havia sido esquecido, julgado como cegueira e ignorância, mas que agora se mostrava necessário, lia suas relíquias novamente, as cartas de sentimentos dos quais se esqueceu, e então entendeu que sem o passado não havia presente, nem futuro.
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As Reflexões do Esquecimento (conto em prosa)
Short StoryVersão em português do conto autoral "As Reflexões do Esquecimento". Traduzido por mim em cinco línguas: Português, inglês, espanhol, japonês e francês.