Uma felicidade esperançosa foi se esvaindo, baixando mais rápido que a disposição quando a glicose estoura depois da gente se encher de comida. Eu até tinha comido, mas não era isso, não, comi leve.
Foi quando eu me deitei e comecei a pensar. Ontem eu trabalhei, hoje eu estou de folga, amanhã eu vou trabalhar, ontem passou, eu acabar de comer já passou, amanhã vai chegar e passar, gasto todo meu dinheiro, fico preocupado, mas mesmo que eu vivesse com dinheiro de sobra, ia viver bem, como gostaria, ia ser feliz, suponho, mas isso também passa. Isso o dinheiro, a idade, o tempo, a importância das coisas. É claro que eu gostaria de viver feliz e com dinheiro, mas o sentido é esse? Não faz sentido existir. E se o sentido fosse esse, ter muito dinheiro e ser feliz, então a maioria das pessoas vive sem sentido, o que não faz sentido, se a vida existe de uma forma em que as pessoas vivem ela sem sentido, então ela não tem sentido. E supondo que não seja o dinheiro o sentido, o que é difícil de não levar em consideração considerando o período, a geografia e a sociedade em que vivemos, mesmo as tribos ou etnias indígenas mais isoladas e pacíficas - e com pacíficas quero dizer que, por terem sido isoladas ou não, não levavam uma vida belicosa contra outras tribos ou etnias por disputa de espaço, ou seja lá por qual motivo as tribos ou etnias batalhavam entre elas -, mesmo assim sem guerra ou disputa por poder e conquista de moeda elas viviam, adoeciam, sofriam, riam, morreram - e me refiro mesmo aos que morreram antes da colonização e massacre pelos europeus -, mesmo sem tudo isso e com tudo isso, passou, serve como estudo de história e de entendimento, serve como sofrimento que passou. E estamos aqui agora. Quero dizer, talvez eu nem esteja mais. E daí?
Oras, passa tão rápido e pra quê? Anteontem eu tive um episódio de enxaqueca no meio do trabalho, foi horrível, ninguém entendia, ninguém entende, mas anteontem passou antes de ontem que emborcou no hoje. E amanhã já está aí na beirada. Como e pra quê?
Tristeza, alegria, ansiedade. Infecção intestinal. Vêm, vão e retornam até morrermos.
Essa angústia, essa falta de querer, enquanto ouvia as buzinas lá fora, o cotidiano... Ah, que desprazer despropositado.
Me revirei em posições na cama, por fim parei de bruços e cabeça torta, sentia partes do lençol nas pernas e a confusão opressora na cabeça. De repente senti algo leve logo abaixo da minha panturrilha direita, considerei rapidamente que uma dobradura do lençol tivesse se desfeito, mas foi uma consideração muito rápida e inconclusiva porque a leveza pinicante logo subiu alguns centímetros pela perna. Imediatamente, com o coração desesperado, chacoalhei minha perna para fora da cama e virei a cabeça rápido antes de me levantar.
Foi muito rápido o tempo em que vi o pequeno vulto escuro correndo em alta velocidade para trás de uma escrivaninha quase encostada na outra parede. Me arrepiei todo ainda com a sensação das perninhas andando rápido na minha perna, argh!!!!
Agucei os olhos e peguei devagar o par direito de um tênis largado num canto e me aproximei devagar da parede para olhar o vão entre ela e a escrivaninha. Felizmente o móvel não tinha um buraco na base onde a barata podia se esconder, era toda direto no chão, e ela estava ali, visível, mas inacessível. Se eu puxasse a escrivaninha ela podia correr para qualquer entulho do meu quarto, para baixo do guarda-roupa no canto mais inalcançável do quarto. Pensei em correr e pegar a vassoura, mas nesse tempo ela podia desaparecer completamente como qualquer barata vampira e reaparecer apenas enquanto eu dormia.
Mas ela começou a avançar em sentido ao entulho, mais para dentro do quarto, oposto da porta, então também avancei desesperado (não sei se as baratas sentem desespero, e se elas soubessem o desespero que causam em nós, fariam a humanidade toda se suicidar) e comecei a bater com meu tênis nos outros pares de tênis e coisas diversas que formavam o entulho. Mas ela, assustada (pelo menos assustadas elas devem ficar), avançou um pouco mais e sumiu no entulho, então eu batalhei ferozmente, usei meu arsenal de energia e golpes, como num surto, sei lá, psicopata? Até que, milagre, milagre não, resultado eficaz da minha luta, a barata voltou por de trás da escrivaninha. Ela saiu do quarto por debaixo da porta entreaberta, eu corri atrás dela, errei a primeira sapatada, acertei a segunda, plash, que nojo.
Com o corpo e cabeça mais mansos só então senti como quase doía de velocidade meu coração. Agora tinha que limpar bem aquela morte toda melequenta, argh, que nojo.
E se tinha uma que apareceu, nunca sabemos de onde, tem outras. Aff, que agonia.
Pelo menos me botou no pique de limpar o chão do quarto, só ia conseguir fazer isso na minha próxima folga e olhe lá, que raramente dava disposição pra isso. Até porque a próxima folga era de domingo, vai saber se eu não ia madrugar na rua e acordar cansado, ou mesmo sair no domingo à tarde. Então limpei meu quarto e senti grande alívio e satisfação, embora soubesse que cloro não era sangue de Jesus.