Todos os anos, desde que me conheço por gente, ou melhor, desde que algum maluco instrutor de direção decidiu que eu tinha capacidade suficiente para pilotar um carro e não obstante, meu pai concordou e em comemoração à minha habilitação de motorista, me cedeu sua picape velha, Raí e eu saiamos em aventuras pelos desfiladeiros terrosos e estradas mal construídas da nossa querida terra-do-nunca, mais especificamente, a tão tão distante cidade de Ventosa, localizada em algum lugar esquecido no interior do estado de São Paulo.
Posso dizer então que essa nossa tradição de fugir à procura de confusão, que na verdade acaba quase sempre se resumindo em dias tediosos vendo paisagens sem distinção e degustação de frutas sob a sombra de árvores, está iniciando seu sétimo ano.
Raí, meu melhor amigo de mil anos e cúmplice para todos os momentos, é quem costuma ficar responsável pelos detalhes mais 'burocráticos' dessas nossas excursões. O destino, o que iremos comer, beber, vestir e afins, tudo fica na conta dele para resolver. Eu sou o piloto, como já dito antes e, para mim, isso já é preocupação demais.
A picape, um barulhento monstro ancestral, relíquia que estava na família desde o tempo do meu avô, estava na minha guarda esse tempo todo. Eu poderia muito bem tê-la repassado há anos, mas sei lá, a lata-velha tinha personalidade e história. Muitas histórias, aliás. E eu acabei optando por não trocá-la. Pode me chamar de um cara sentimental, eu acho.
E também, a velharia vinha com um bônus agradável, nada nunca amedrontou pessoas interesseiras como ela. Era um bom filtro de caráter, eu diria. Não que tivesse muita gente assim na minha cidade, cujos habitantes eram formados majoritariamente por agricultores e pequenos empreendedores, mas às vezes aparecia umas peças raras da capital por nossas bandas e desse tipinho eu queria distância.
Então, lá estávamos nós, o trio parada dura: minha picape velha de guerra, meu melhor amigo e eu, navegando pelas estradas incertas que levavam até...
— Onde vamos mesmo? - Perguntei à Raí, não estava mais recordando o nome do lugar. Ele, como bom copiloto, ia me dando as coordenadas, o que praticamente significava ir toda vida dirigindo reto pela estrada, sem pegar nenhum desvio. Isso já há mais de uma hora. Só havíamos parado em um momento porque Raí cismou que queria porque queria comprar maçãs de um vendedor de beira-de-estrada. Acabou que compramos também algumas mangas e uma melancia que eu não fazia ideia de como iríamos partir. Espero que Raí tenha trago uma faca...
Se deliciando com sua maçã, ele me respondeu:
— Se chama 'Ponte Quebrada', a cidade, mas não vamos ficar nela, não tem nada de interessante lá. Mas, fiquei sabendo que um pouco antes da entrada da cidade tem esse lugar de acampamentos.
— Um camping.
— Sim, como você preferir chamar.
— Mas por que estamos dirigindo 200km para acampar no meio do mato se poderíamos fazer isso em qualquer lugar?
— Lá é próprio para isso - disse como se fosse a coisa mais óbvia do mundo - E tem as trilhas, a cachoeira. Não terá o perigo de dar de cara com uma onça porque o lugar é protegido. E também não precisamos comprar barracas, eles oferecem. Não seja estraga prazeres, André, você vai gostar.
— Aposto que sim, a última vez que acampei eu deveria ter uns 12 anos.
— Eu nunca acampei.
— Excelente, 'tô vendo que não poderei contar com suas habilidades para acender uma fogueira.
— Claro que pode, eu trouxe isqueiro - Enfiou a mão livre no bolso da calça, revelando o objeto com um sorriso esperto no rosto.
A viagem seguiu tranquila, sem música e nem nada, apenas o silêncio confortável entre nós. Poucos carros faziam aquele caminho naquela época do ano, início de Abril. Era comum ver caminhões de carga e vez ou outra, ciclistas. Não me pergunte por quê. Fiquei até curioso em alguns momentos e com vontade de perguntar para onde aquela gente ia de bicicleta, mas me contive. Provavelmente apenas pessoas tentando ter vidas saudáveis, que seja, não era da minha conta.
Quando chegamos, fui atrás de informação sobre onde estacionar, enquanto Raí se encaminhou para a recepção do que parecia ser uma pousada. A fachada era simples e bem acolhedora, à primeira vista poderia ser confundida com uma chácara, mas dando uma boa olhada se percebia uma boa extensão da propriedade. Contava até com piscinas e quadra de vôlei. Fui informado por um dos funcionários que seria melhor retirar os pertences mais pesados do carro, como mochilas, porque o estacionamento não ficava tão perto. Raí voltou e com sua ajuda descarreguei o que seria necessário, enquanto ele iria me explicando quais eram os planos para o dia.
— Seguinte, são oito da manhã. Vamos tomar café-da-manhã aqui e aí alugamos as barracas e as parafernalhas de acampamentos, lanternas, essas coisas, e partimos. Aqui tem quartos para alugar. - Abri minha boca para falar, mas fui rapidamente impedido. - Nem pense nisso, viemos aqui com uma missão.
— Acampar?
— Acampar. Exatamente. A trilha tem dois pontos para montar barracas, pelo que a recepcionista me explicou, não é nada difícil e nem longo e nem perigoso. Vai ser divertido. Certo?
— Claro, capitão. Você que manda. Agora eu vou estacionar e já volto, estou louco por uma xícara de café.
— Te vejo lá dentro.
— Certo.
Quando retornei, quão grata foi minha surpresa ao descobrir que teria que assinar um documento me responsabilizando pelo risco 'iminente' de morte.
— Mas que inferno de passeio é esse que você planejou, Raimundo?
— Fala baixo, André! - Me repreendeu.
Estávamos sentados em mesinhas bem charmosas tomando nosso café-da-manhã, no hall de alimentação do que percebi, realmente se tratava de uma pousada. Bem maior por dentro do que parecia vista de fora.
Alguns hóspedes estavam espalhados pelo ambiente, mas ninguém próximo o suficiente para me ouvir.
— "Acidentes fatais? Picadas de animais venenosos?" É isso o que você chama de não perigoso, Raí?
— Relaxa, não seja dramático. Apenas assina. Isso aí é apenas por garantia.
— Garantia pra quem?
Ele riu, pegou seu termo de esclarecimento e assinou. Ótimo, meu dia já começa com alertas de possíveis tragédias. Não que eu seja medroso, mas vamos lá né, tenho somente 25 anos.
— Ok. Pelo menos o café daqui é bom. Tem certeza que não podemos ficar nos quartos? - Raí me deu uma boa encarada. - Certo, certo. - Assinei o documento e o entreguei. - Que comece a aventura.
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Kiss Me Now
RomanceDois amigos decidem acampar para fugir da ociosidade de suas rotinas e no meio disso, um deles tem a grande ideia deles usarem 'aditivos para a mente', por assim dizer (não usem drogas!). Quando a onda bate forte, eles acabam se beijando e, pronto...