Dia 1 - Início da chuva

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Senti a necessidade de relatar as coisas ilógicas que estão acontecendo conosco usando esse caderno. Se estivermos todos enlouquecendo, vítimas de uma histeria coletiva, meus relatos talvez sirvam para nos estudar quando internados num hospital psiquiátrico. Se todo mundo dentro desse mercado morrer, talvez sirvam para as autoridades investigarem o que aconteceu. Se for realmente o apocalipse, escrever pelo menos vai me ajudar a passar o tempo até o Juízo Final. Às dez e vinte da manhã de um sábado, a Chuva Cinzenta prendeu dezenas de pessoas nesse mercado, incluindo eu. Havia acabado de passar as compras no caixa quando o barulho começou, iniciando as horas de loucura como uma trombeta do fim dos tempos. Não havia previsão de chuva para aquele fim de semana e o sol do verão dizia para não levar qualquer guarda chuva ou agasalho enquanto abrasava as peles de quem não se protegia na sombra. Aquele temporal repentino teria apenas me deixado irritada momentaneamente, me forçando a esperar dentro do mercado até o sol voltar, mas não seria nada demais. Foi o que eu pensei até olhar para a chuva.

As gotas espessas caíam aos montes com um aspecto viscoso como azeite despencando do céu, mas o que mais chamava atenção era sua coloração cinza, quase prateada, saindo de nuvens pretas como fumaça. As poças daquele líquido se formavam no chão e não pareciam ser nem mesmo translúcidas como água comum, criando manchas metálicas pelo asfalto do lado de fora do mercado. Aquilo não tinha como ser água. Nunca tinha me deparado com nada parecido antes. Lembro que senti um arrepio por todo meu corpo, e não era apenas por conta do frio repentino que entrou com uma onda de vento balançando os cabelos e as sacolas plásticas. Nada fazia sentido.

A primeira ideia que me veio à mente foi que se tratava de algum tipo de chuva ácida. Um senhor ao lado comentou que aquilo parecia mercúrio. Da entrada, era possível ver as poucas pessoas na rua correndo para os estabelecimentos ao redor como farmácias e pet shops ou para os seus carros. Clientes que tinham veículos no estacionamento saíram com eles o mais rápido possível, bem como uma das duas únicas mulheres que levaram um guarda chuva. Nunca saberemos o que aconteceu com eles, mas mais tarde teria motivos para acreditar que seus destinos foram os piores possíveis.

Com o estabelecimento movimentado naquele dia, conseguia ouvir os funcionários e clientes discutindo entre si sobre o que seria aquele fenômeno, e todos os que estavam em outras partes da loja vieram à entrada para entender o que acontecia. Tentei me comunicar com a minha mãe pelo celular, mas não havia qualquer sinal lá dentro. Com mais ou menos uma hora sem que a chuva cessasse ou diminuísse, apenas acumulando mais e mais daquele líquido anômalo que agora formava grandes poças e correntes descendo os bueiros da avenida, a multidão já estava imersa em desespero. Crianças e alguns poucos adultos choravam e o próprio gerente do mercado havia sido convocado para apaziguar a situação, pedindo aos funcionários e clientes que se acalmassem e não saíssem na chuva, mas mesmo ele estava claramente transtornado. Pelo menos duas idosas rezavam na porta.

Uma mulher de meia idade que destoava do resto da multidão por ser uma das poucas pessoas a expressar impaciência e raiva ao invés de apreensão pegou seu guarda-chuva e atravessou a entrada mesmo sob a contra-indicação da gerência. A mulher debochou do lado de fora sobre como estávamos presos abaixo do teto enquanto a chuva não nos oferecia perigo nenhum e seus pés com partes expostas pelas sandálias se molharam enquanto ela pisava nas poças com líquido prateado. Esse foi o gatilho do apocalipse.

Ela percorreu pouco mais de uma dezena de passos de costas viradas para o mercado, até paralisar e ficar estática por alguns segundos, gemendo e grunhindo. E então, a mulher começou a se contorcer. Seus joelhos e coluna arquearam enquanto ela encolhia como se quisesse se enrolar imitando uma serpente. Seus braços com todas as articulações travadas à exceção do ombro giravam em seus eixos e os ossos se retorciam tanto que ficavam aparentes mesmos sob as roupas, com as omoplatas quase saltando para fora de seu corpo. E os gritos... Aqueles gritos foram diferentes de tudo o que já ouvi. Não eram os gritos de dor normais de uma mulher adulta, mas algo bestial, como um pássaro ou primata sendo torturado até a morte. Já com o rosto sendo rasgado pelas partes afiadas de metal do próprio guarda chuva, ela caiu no chão espalhando o líquido anômalo por todo seu corpo. A visão daquele ser humano retorcido como um brinquedo quebrado, ensanguentado e coberto por aquela lama cinza emaranhava minhas entranhas, e a única reação que meu corpo considerou plausível foi vomitar. Não estava sozinha, realmente. Outras pessoas também vomitaram, algumas gritaram, correram para dentro do mercado ou se esconderam atrás dos caixas, mas a maioria delas só exibiu tais reações depois que a situação se agravou. Depois que ela começou a rastejar na nossa direção.

Corri para me esconder atrás do caixa, mas a tempo de ver a maioria dos seguranças se amontoando na entrada enquanto um funcionário puxava o portão de aço. Aquela coisa que nem sei se poderia ser chamada mais de uma pessoa rastejava lentamente, mas cada centímetro que ela avançava parecia estar chegando em nossos joelhos. Alguns me disseram mais tarde que ela quase chegou a entrar no mercado, mas uma funcionária a nocauteou e empurrou para trás com um golpe de esfregão. Seja como for, não consegui ver nada disso, apenas fiquei deitada em posição fetal ouvindo os portões de aço se fecharem e o desespero de dezenas de pessoas se dissipando lentamente até parar e deixar só barulho da chuva.

É difícil descrever a sensação, como se fosse um choque tão grande que desconectou meu cérebro do resto do corpo e deixou minha mente vagando no vazio. Até quando um dos seguranças me obrigou a levantar e ajudar o resto dos sobreviventes na montagem de um dormitório improvisado no armazém, eu me sentia executando as funções no automático, movida pelas ordens do gerente e dos guardas como um boneco enquanto meu espírito fugia do barulho da chuva lá fora e rebobinava aquela criatura rastejando. Fizemos o esboço do que seriam camas com caixas de papelão e alguns tecidos como panos, lembrando os locais precários que moradores de rua usam para dormir. A energia elétrica acabou e o mercado está funcionando na base do gerador, mas foi decidido que o mais lógico era apagar as luzes e economizar energia para as geladeiras e o ar condicionado, que ajudava a não tornar o ambiente tão abafado com todas as janelas fechadas para a chuva.

De tão alheia, só percebi que estava com fome pelas seis horas da tarde, quando terminamos de arrumar tudo, mas mesmo precisando comer, nenhum alimento me apetecia. Percorri os corredores até voltar à entrada da loja, encontrando minhas sacolas de compras paradas no chão em frente aos portões fechados. Havia ainda alguns poucos clientes e funcionários limpando juntos a bagunça deixada pela multidão correndo em desespero, com compras caídas sujando o chão com leite, carne moída, suco e açúcar melando notas fiscais e cacos de vidro. Porém, minhas compras ainda estavam lá. Abri as sacolas para olhar os pacotes de pão de forma, a maionese, o atum, a cebola e o requeijão. Eu e minha família tínhamos planos para ir à uma praia afastada no dia seguinte, chegar de manhã cedo e só voltar ao entardecer, e deixaríamos vários lanches com patê de atum prontos para comermos ao longo do dia. Mas agora, tudo está acabado. Não sei o que aconteceu com minha mãe, minhas tias, irmãos, meu namorado, não sei se sobreviveram à chuva ou se foram transformados, mas alguma sensação inconsciente que não conseguiria descrever me diz que nunca mais vou vê-los. Até aquele momento, estava em choque demais para chorar, mas todas as lágrimas acumuladas começaram a correr dos olhos. Não conseguia tirar da cabeça a imagem mental da minha mãe ou da minha irmãzinha como aquela mulher, rastejando e se contorcendo, soltando aqueles gritos.

Mais tarde, decidi pegar um caderno e uma caneta na seção de material escolar. Preciso escrever de alguma forma o que está acontecendo. Estou longe dos outros clientes iluminando o caderno com o celular, que felizmente ainda está com uma boa bateria, embora agora sua única função seja a de relógio e lanterna já que qualquer sinal foi afogado pela chuva. São onze e meia da noite e eu simplesmente não consigo dormir, apenas revirei naquele papelão que não amortecia a dureza do piso e pensei em todas as pessoas que poderiam estar agora presas ou transformadas, imaginando como o mundo acabou e que nunca mais vou sair daqui, talvez vivendo tempo o bastante para testemunhar o canibalismo. Ou então talvez pensando como tudo isso é apenas um pesadelo bizarro que está durando tempo demais, e que daqui a pouco vou ouvir uma música irritante nesse mercado até abrir os olhos e descobrir que é o despertador me acordando para mais um dia de trabalho e depois faculdade no período noturno. Mas eu não escuto música nenhuma. Tudo o que escuto são vozes por todos os corredores onde eu ando dizendo palavras incompreensíveis em gemidos e lamúrias junto com o barulho da chuva, e todas elas parecem o grito daquela mulher. É como se as pessoas afetadas chamassem do lado de fora, querendo entrar. Qualquer um dos objetos mais comuns na pareidolia da escuridão parece vivo e mortal, e talvez seja nada mais do que paranoia, mas sinto como se todos nós estivéssemos sendo observados, caçados como presas por alguma coisa que não sei descrever. Se isso for um pesadelo, ele parece estar apenas começando.

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⏰ Última atualização: Sep 23 ⏰

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