Dança com a morte

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As passadas soaram pesadas sobre o solo, incertas em consequência a leve embriaguez na qual os sentidos imaturos haviam sido temporariamente aprisionados. Em teimosia perante ao corpo que implorava por um lugar seguro para descansar, a silhueta bem definida brincava entre o caminhar e o curvar dos membros a fim de apanhar algumas pedrinhas sobre o chão. O ato simples levava aos lábios um meio sorriso, um dos resultados do álcool no organismo que ainda lutava para acostumar-se aos efeitos poderosos que apenas uma bebida de origem duvidosa poderia provocar. Sem um pensamento certo de para onde ir, também não conseguia formular o quanto o passeio noturno ainda iria durar. O suspiro pesado rompeu o silêncio, concentrava-se em manter o controle de si, enquanto afastava-se cada vez mais dos companheiros, da capitã que deveria seguir com incerta lealdade.

Os olhos verdes brilharam intensamente, rompendo o assombro que a escuridão palpável conduzia. A mulher buscava distinguir entre a iluminação pobre do cais próximo, os navios atracados que se ocultavam na noite densa. A nova música produzida pelas passadas dos calçados, a fez reconhecer que pisava sobre a madeira. O som provocado pelo balanço infinito das águas salgadas, em companhia ao fedor pútrido que misturava-se a maresia, denunciava o quão próxima estava do mar. Quieta, aproximava-se da embarcação enorme que alimentou a atenção da pulsão pelo perigo, a madeira escura e desgastada estendia-se alta em um misto desequilibrado de imponência e certa fragilidade. A excitação fez o estômago contrair, e a bebida fez surgir o sabor rançoso da náusea, Samira usava as mãos para arrumar melhor o armamento preso ao corpo, mera preparação para decisão tomada de escalar o casco daquele navio.

Os músculos fortes, moldados pelo crescimento em meio às demonstrações perigosas de agilidade nas acrobacias, juntamente com o tempo que percorreu ao lado dos companheiros noxianos, não encontraram a mínima dificuldade para subir no monumento formado em madeira, rápida, sentia os pés tocando o convés antes mesmo que alguma emoção conseguir atravessar o corpo. Despreocupada com a possibilidade de um ataque, ou a presença de alguém mais naquele navio, deixou-se perder nos efeitos da bebida e caminhou lentamente para a proa que encarava a infinitude de trevas que fazia céu e mar se misturar. Sentia agora a brisa fria, carregada de sal do mar, tocar-lhe a face de expressão rígida, se curvava o bastante para que os seios fossem sufocados pela madeira fétida enquanto os olhos se fechavam em uma falsa sensação de desatenção.

O movimento anormal sobre as águas, seguido do som que corrompeu sua silenciosa meditação, a fez direcionar as orbes de maneira certeira até o frágil barco a remo que balançava junto às ondas e pouca coisa distante do cais, uma lamparina de fraca chama alaranjada lutava para iluminar o comprimento da pequena embarcação e seus tripulantes. Os olhos estreitaram-se a fim de focar melhor, pode então distinguir duas silhuetas que se equilibravam ali, não parecia uma discussão, percebeu a má situação que rodeava os desconhecidos quando um gemido de dor sobressaiu ao barulho constante do mar. Foi automático buscar a pistola presa às vestes, totalmente atenta as sombras que dançavam perigosamente sobre o barquinho. Analisando melhor, as pupilas bem treinadas puderam distinguir a mulher em posição de domínio em relação ao homem ajoelhado, as mãos delicadas apontando sua arma diretamente na cabeça do rival.

Prendeu totalmente a respiração, como se a mesma brisa que lhe tocava a pele também fosse a responsável por poder denunciar sua presença para aquela mulher. Sua pistola pronta para atingir o homem e sua algoz, a confiança inabalável na própria habilidade provocando seus sentidos. Os dedos formigaram sobre o gatilho, e o vento que atingiu seu corpo alcançou a pequena embarcação. Os olhos, já bem acostumados ao escuro, se abriram um pouco mais, presos no movimento selvagem da longa cabeleira vermelha que flutuou no ar. Mordeu o lábio, atraída pela sensação de perigo que emanava pelo corpo da mulher desconhecida, e que fez a pele arrepiar. Em um momento, recordou-se do quadro de recompensas e o raciocínio finalmente se formou certeiro segundos antes do tiro ecoar. Agora, uma única silhueta podia ser vista naquela embarcação, em pé, ainda mantendo a postura fria diante do ato hediondo, das gotas grossas do sangue que lhe atingira e que não era o seu.

Permitiu-se soltar o ar devagar, cuidadosa para não se deixar dominar pelo arfar pesado, enquanto assistia a mulher sentando-se e tomando em ambas as mãos os remos. A medida que aproximava-se do cais, a chama fraca da lamparina permitiu a Samira visualizar a face delicada demais para pertencer a uma assassina, porém, extremamente fria. Os olhos focados no mar não podiam enxergá-la ali, e a brisa fazia com que os cabelos vermelhos açoitassem o rosto antes de esparramarem-se sobre os seios, lindo e perturbador, como se banhasse a mulher com expesso e vivido sangue.

Precisou caminhar outra vez pelo deque do navio, movida pela curiosidade, seguia o percurso daquele barco a remo e da assassina que a cada segundo, ao ser iluminada pela lamparina, dominava mais a sua atenção. Já não notava o arfar baixo, ritmado, que misturava-se a névoa densa que se formava com o cair da madrugada, ou, com o calor que emanava pelos poros, deixando-a arrepiada ao choque de ser tocada pelo clima fresco. Os olhos verdes assistiram a embarcação pequena atracar, o salto baixo da mulher pisando firme sobre as tábuas imundas do cais, com dificuldade, os braços agarravam o cadáver, o guiando para que pudesse arrastá-lo pelo chão. Neste ponto, Samira já se aventurava outra vez pelo casco do navio, imprudente, permitia-se levar pelos instintos mal direcionados da hipnose provocada pela desconhecida.

Em um salto curto, atingiu a madeira do cais. Companheira da penumbra, usou a falta de iluminação decente para esgueirar-se ao perseguir a silhueta cujo nada mais que os longos cabelos vermelhos era destacado. O efeito da bebida foi se apagando enquanto, audaciosa, a cada segundo permitia-se aproximar mais da mulher, os calçados pesados pisando sobre o rastro de sangue que o defunto ainda deixava. Empunhou novamente a pistola, reflexo provocado pela voz baixa da assassina, que, sem incomodar-se com a ação nefasta de arrastar sua vítima por um longo caminho, cantarolava uma canção como os marujos ao desbravar o oceano. Alcançava lentamente o quadro de recompensas, o tom doce do canto ainda descrevendo a selvageria do mar e os temíveis monstros que se ocultavam nos abismos marítimos.

Finalmente o silêncio predominou.

Samira lutava para controlar a propria respiração acelerada pela caminhada e o ar pesado que dominava todo aquele lugar, assistia a ruiva analisar o quadro enquanto aproximava-se da única fonte de luz presente por ali. As orbes esverdeadas pegaram fogo em meio as trevas noturnas, a agitação do coração fez com que duvidasse do controle que mantinha do seu corpo. A desconhecida se alongava sob a lamparina, os dedos sujos de sangue ocultavam-se entre os fios escarlates ao jogá-los para trás. Na palidez da face, os lábios grossos destacavam o tom forte de batom, e, a camisa desabotoada desenhava um decote provocativo por onde os seios empinados pareciam prestes a saltar.

Os dentes afiados cortaram o lábio inferior ao se fincarem na carne, sentia a necessidade urgente de desviar a atenção da sensação ainda desconhecida que fazia o estômago queimar. Já não compreendia mais a teimosia que deixava seu corpo paralisar ali, de olhos vidrados,  enquanto assistia as mãos delicadas tornando a segurar uma pistola. A chama em seus olhos inflamaram mais e o ventre sofreu com uma única e dolorosa contração. A assassina retomava a mesma expressão gélida, os olhos de tons incertos ao refletir a chama fraca da lamparina encarando-a mesmo oculta na escuridão, erguia a arma com sofrega lentidão.

— Apareça ou sucumba!

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