Laranjas flácidas e com estrias

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Era uma vez um lindo jardim viçoso, cheio de árvores frutíferas. Diferenciavam-se da floresta que crescia próxima dali: as frutas viam, falavam e até sentiam. No fundo do pomar, havia um casebre; pequeno, mas feliz. Um caminho de terra conduzia até as entranhas da floresta. No gramado, viviam alguns insetos, inimigos das frutas. Um desses insetos, uma mosca-da-fruta, estava parada à veneziana aberta da casinha do casebre. Ouviu a mãe pedir para que o filho fosse buscar algumas frutas.

– Pode me dar uma listinha? Não vou me lembrar de tudo.

A mãe, então, pegou um papel e um lápis de cima do armário e escreveu o nome de algumas frutas. Entrega, junto com a lista, uma grande bacia. O filho vai para o jardim e alegremente coleta as frutas solicitadas. Foi colocando na bacia algumas uvas, maçãs, bananas, dois pequenos mamões e um melão. Sem espaço para mais nada, volta para casa e dispõe todas em cima da mesa. O garoto diz à mãe que não tinha mais espaço na bacia e por isso voltaria para pegar as laranjas. A mãe gesticula um "sim" com a cabeça e pede para que o filho coloque as frutas na pia, para poder lavá-las.

Os insetos que conheciam as laranjas voaram desesperados para tentar alertá-las do perigo iminente. Foram recebidos com xingamentos e se passaram por "lunáticos", "implantadores de medo" e outros insultos. Ninguém comia laranjas ali. Chegando perto da laranjeira, o menino olha de cima a baixo e percebe que as laranjas do topo eram melhores que aquelas que estavam a seu alcance. Mesmo assim, colheu cinco das que conseguia e voltou para casa. Colocou-as em cima da mesa, junto das outras frutas. A mãe estava com uma faca na mão e com duas bacias na mesa: uma vazia e, na outra, algumas frutas estavam sendo afogadas e sufocadas.

As laranjas, impactadas com o fato de terem sido colhidas, olharam as outras frutas, que estavam paralisadas, apavoradas, olhando o movimento que a faca fazia ao cortar um mamão. Horrorizadas estavam, principalmente, com tamanha habilidade que os dedos e os pulsos da mulher tinham para esquartejar aquela pobre criança. Quando a mulher volveu os olhos para as laranjas, ouviu-se um suspiro preso e quase mudo de uma delas. A assassina estende a mão, pega uma delas e tenta descascar. A casca estava flácida, não estava fácil, nem mesmo para a destreza com a qual a mulher contava.

Irritada, bate a laranja contra a mesa, acalma-se num suspiro, de olhos fechados, sorri e pede para que o filho encontre novas laranjas. Este diz que as do topo estão melhores, mas que não tinha com o que pegar. A mãe deu a ideia para que ele fosse pedir ao vizinho um pegador de frutas e ele foi. Chegando na laranjeira, mirou no topo e estendeu o pegador e colheu três laranjas maduras, invejáveis. Ao chegar, a mãe logo descascou.

As laranjas flácidas olhavam a desgraçada cortar aquelas pobres moças, violando-as impiedosamente. De fato, nenhuma daquelas laranjas presenciara cena tão forte quanto aquela. Pior para elas era saber – e daquele jeito – como eram as suas tripas. Algumas gotas das três laranjinhas voaram nas uvas. Essas, espavoridas, berraram com toda a força.

Uma a uma, todas as frutas foram mortas, descascadas, esquartejadas. Houve uma chacina naquela mesa, cuja santidade deveria ser resguardada, imaculada. Um fruticídio cruel, com espectadores e com os olhos desejosos de uma criança que deveria ser inocente. As miseráveis, uma delas descascada pela metade, choravam copiosamente, umas segurando as outras. Entraram em estado de trauma: não falavam mais, não sorriam mais... não sentiam nada mais que dor, tristeza e pânico. Murcharam ainda mais.

O menino as colocou em cima do balcão, de onde podiam ver as pessoas comendo uma quantidade absurda de famílias cozidas. Fervidas nas próprias lágrimas. Inchadas pelas suas entranhas dilatadas e distendidas. Ojerizadas, bolçaram suas angústias, sua taquicardia, seu choro entrecortado por soluços e suspiros. Todos eles pareciam se deliciar ainda mais com as frutas esquartejadas e dilaceradas, mergulhadas no próprio sangue. O que mais chamou atenção foi a necessidade que os funestos ominosos tinham em beber até a última gota.

Alguns insetos vieram prestar condolências às laranjas, que expressaram sentimentos pela consideração dos antes inimigos. As moscas-da-fruta ficaram estupefatas com tamanha hediondez quando viram a bacia e a alegria em servir para as visitas. Sentiram-se dúbias: pensavam no sentimento das laranjas, mas aquele doce, aquelas frutas... eram demasiado deliciosas. Nada exprimiram dessas reações senão lástima.

Os segundos alargaram-se. Os minutos pareciam horas e horas, dias. Tudo estava diferente. Tudo estava ignóbil, morto, ou, ao menos, definhava. Outrora, havia magia; agora, realidade. E quanto mais tentavam fugir do que acontecera, mais fortes vinham as lembranças e nutavam as supostas forças que supostamente se edificavam. E quem conseguiria dormir depois daquele dia?

De olhos vermelhos, cara amassada, exauridas, as laranjas viram o sol fulgir antes dos algozes. E logo de manhã, algumas visitas chegaram. Na conversa, as ínfimas laranjas descobriram que todos comiam laranjas. O problema é que nenhuma sobreviveu para contar a história. Eu mesmo fiquei perplexo. O ciclo de vida de uma mosca-da-fruta não é grande a ponto de saber que frutas são comidas por eles também. Inclusive, nós estamos tão apressados em comer e reproduzir que nenhuma informação é tradicional senão o instinto.

Não gostaria de contar o que aconteceu no final, mas preciso. As moças foram partidas ao meio e suas vísceras foram servidas em copos cruentos para a degustação de abominosos. É claro que, depois de mortas, eu ganhei certa liberdade para agir. E, obviamente, o fiz: voei e experimentei do doce e suave sangue daquelas laranjas. Sendo sincero, eu mesmo faria tudo o que fizeram... vale a pena.

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⏰ Última atualização: Sep 25 ⏰

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