Capítulo Único

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Ele tentou chegar o mais rápido possível.

Sua última missão no Reino Mortal havia sido árdua. Designado para cuidar de um criador de gado em uma região de invernos rigorosos, tudo parecia correr bem a princípio, como o primeiro brilho de um amanhecer.

No entanto, conforme os dias passavam, a realidade mudava. A colheita começou a falhar, e a família do homem enfrentava dificuldades cada vez maiores. Para aliviar o sofrimento deles, Febatista concedeu um de seus milagres.

Naquela época, a palavra do Divino ainda estava se espalhando, os milagres se tornavam cada vez mais frequentes e algumas estátuas já eram erguidas por fiéis aqui e ali. No entanto, dentre os muitos devotos que existiam, poucos eram escolhidos para desempenhar um papel importante no plano divino. O mortal que Febatista estava protegendo era um desses escolhidos. Seu destino havia sido traçado desde o início, reservado para ele, e agora o serafim recém-ascendido tinha a missão de guiá-lo.

De qualquer maneira, com essa bênção, a família não apenas sobreviveu, mas floresceu, adaptando-se à nova prosperidade. Até mesmo um altar foi construído no centro do pequeno vilarejo da comunidade, dedicado às orações e agradecimentos.

A capacidade humana de se moldar às adversidades e encontrar soluções sempre o surpreendia. Apesar de estar treinado para antecipar imprevistos, o serafim ficava constantemente maravilhado com a astúcia e a resiliência dos mortais, que pareciam sempre encontrar uma forma de se levantar, não importando o quão profundo fosse o tombo.

Aqueles seriam os melhores momentos para ele partir — tudo estava em paz, e a família prosperava. Mas o mortal ainda não havia pedido o milagre, apesar de já ter recebido a bênção secreta do anjo.

Os ventos frios logo trouxeram novos problemas. Barcos de madeira começaram a surgir no horizonte, uma maré de desafios inesperados.

"Estão vindo do sul", ouviu alguém dizer, com um tom de alerta. Invisível aos olhos humanos, Febatista se movia entre dois mundos: de um lado, barcos lotados de famílias e suprimentos; do outro, casas de pedra repletas de ansiedade e armamentos.

O que se seguiu foi uma cena de brutalidade que ele não via há muito tempo. Embora a violência fosse algo que ele já presenciara em inúmeras ocasiões, ainda assim provocava um desconforto profundo. Caminhando pelos destroços, entre corpos que jaziam ao acaso, Febatista sentia um arrepio involuntário diante da fragilidade da vida humana, que se esvaía de forma tão rápida e fugaz diante de seus olhos imortais.

Para o serafim, as razões do conflito — se era uma questão de vingança, dívida ou promessa de sangue — não importavam. Seu dever era claro: guiar a alma que Deus escolheria salvar no juízo final, resgatando-a por seus méritos. Sua função não era intervir no caos, mas observar, até que o momento crítico chegasse e a vida do mortal estivesse prestes a ser arrancada do corpo. Era nesse instante que ele poderia agir, se a súplica fosse feita.

Foi o que aconteceu. Em meio ao caos que assolava sua casa, o homem fugiu, deixando a família para trás, buscando refúgio nas montanhas. Nem mesmo o serafim pôde prever tal ato de desespero. A cada passo na neve, Febatista sentia aumentar sua frustração com aquela escolha egoísta e covarde.

Apesar disso, ele sabia que não era seu papel julgar. Como serafim, sua posição lhe conferia uma liberdade singular para refletir sobre as ações humanas. Mesmo assim, algo nele fervia de indignação. A coragem que ele tanto admirava nos mortais havia sido substituída por uma fraqueza lamentável.

Ele fechou os olhos por um momento, permitindo-se sentir a tristeza e a frustração, ponderando sobre a natureza contraditória da humanidade — ao mesmo tempo, magnífica e miserável.

your eyes they look like mineOnde histórias criam vida. Descubra agora