"No matter where I go
The dark finds out"
KNOCKED LOOSE, Take Me Home, 2024
Não me arrependo do que fiz. Não quero romantizar minha história, dizendo que eu não sabia das consequências, pois sim eu sabia bem, e muito menos dizer que foi culpa de meus pais ou de algo que assisti na televisão, ou sequer culpa dos videogames. Eu fiz porque quis. Mas não sabia no que me tornaria no final de tudo. Não. Não o final, e sim o começo de tudo. Chamo-me Anice, e já faz mais de dezessete anos que tenho dezessete anos.
Nasci e cresci em uma cidade grande que sempre odiei. Cheia de neons doentios, com uma multidão de sonâmbulos que ao olhar para suas faces sentia uma imensa vontade de vomitar. Os arranha-céus arranhavam-me por dentro, minha pele ardia sob um sol quase vermelho, em um céu cinza opaco, e a noite poucas estrelas apareciam, devido à mancha escura de poluição que gira sobre a cidade, como um abutre que gira em torno de um animal moribundo. Desde criança me sentia deslocada no mundo. Nunca fui sociável, nunca gostei de brincar com outras crianças, e todas as bonecas que ganhei logo perdiam a cabeça. A coleção de bonecas sem cabeça que tinha talvez fosse a única coisa que eu tivesse afeto. Mas após os nove anos de idade perdi o interesse. Fui filha única, e minha mãe batalhou muito para me criar sozinha, já que meu pai nos abandonou quando eu ainda estava na barriga dela. Sinceramente nunca senti falta dele, ou de qualquer outra pessoa, a solidão me faz bem. Não sei bem como tudo começou. Talvez tenha começado quando nasci. Sempre fui assim, mas só fui descobrir o prazer em matar, um pouco mais tarde. Não gosto de chamar quem mato de vítimas, é piegas demais. Ninguém é vítima nesse mundo sórdido, nem mesmo uma criança. Presas, é como eu chamo quem mato, sou uma caçadora, uma predadora solitária e tudo e todos à minha volta são presas, prontas para serem devoradas.
A primeira presa que cacei foi na época dos meus dezesseis anos, se bem que não uma caçada em si, já que não foi planejado. Não por mim é claro. Ela se chamava Vivian, uma típica loira chata e metida da maldita sala onde eu estudava. Uma mimada, que só sabia falar de sexo, maquiagem, e das bolsas que comprava. Além de fofocar e espalhar boatos e mentiras sem parar. Era metida a riquinha, mesmo estudando numa escola pública que caia aos pedaços. Na verdade, eu odiava todos da minha sala, eram um bando de inúteis, mas a vaca da Vivian, ah, essa eu odiava de uma forma muito mais especial.
Bem, voltando à história, um pouco depois de eu completar dezesseis anos, algo interessante aconteceu. Estava na sala de aula, como sempre na última carteira, quieta fingindo prestar atenção no que a professora de matemática, uma velha gorda e rabugenta, tentava dizer. Vivian não parava de tagarelar alto, e há tempos que a professora havia desistido de tentar disciplinar a minha sala, que por sinal era a pior da escola. A porca falante com sua voz estridente de taquara rachada me deixava levemente inclinada em esmurra-la até fazê-la engolir os dentes. Obviamente, deixei esse desejo apenas em minha mente. Foi então que uma dor de cabeça me atacou. Senti como se o meu crânio fosse explodir e espalhar os meus miolos por toda sala. Era como ter uma mosca gigante zumbindo dentro dos tímpanos. Respirei fundo e coloquei as mãos em minha fronte, apoiando os cotovelos em cima da carteira. Senti meus cabelos se mexendo, como se fossem serpentes, e por um instante pensei ter ouvido o silvo delas. Decidi abrir os olhos, então vi algo que fez meu coração disparar, e meu sangue gelar. A minha pele antes morena de sol, estava agora branca como uma folha sulfite. Um grito morreu na minha garganta, e pude sentir como se duas mãos invisíveis e grandes apertassem meu pescoço. Logo em seguida senti um forte solavanco e tive a sensação de ser puxada para cima. Via a sala toda, e a mim, uma garota ruiva mais ou menos alta, magra, com algumas sardas no rosto, que naquele momento estavam derretendo. A pele escorria e pingava sobre a mesa, deixando à mostra a brancura dos ossos. Não havia mais olhos, apenas dois glóbulos vermelhos sangue flutuavam dentro das órbitas. A imagem era aterradora, mas não durou muito, pois voltei ao normal, olhando novamente a sala, mas ainda com dor de cabeça. Foi nesse instante que aconteceu, quando olhei para a sala novamente, tudo estava exatamente igual como olhava antes dessa experiência, com exceção da voz de Vivian que estava mais alta do que nunca. Parecia que gritava, falando sobre o maldito celular novo que ganhou do "papaizinho". Minha cabeça latejava com aquela voz dentro de mim, e não podia mais aguentar aquilo, então desejei que morresse e carregasse para o inferno aquele celular desgraçado. Como se meu pensamento se materializasse, o que desejei, aconteceu. O celular deu um forte choque direto no rosto da garota, um brilho que parecia um flash azul, e no instante seguinte, o corpo da garota tombou para frente, caindo com a face inerte, e queimada em cima da carteira. Eu tinha matado minha primeira presa.
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DEUS EX MACHINA
HorrorPresa dentro de uma grande e opressiva cidade cinzenta, Anice, uma jovem de dezessete anos, busca encontrar sentido em uma existência solitária e perturbadora. Guiada pelos néons doentios que iluminam a cidade e por seus próprios demônios, em um mun...