Quando ele entrou todos ficaram em silêncio.
A Taverna do Zé Carlos não era um lugar dos mais bem frequentados, beberrões e baderneiros passavam seu dia ali em meio a conversas fiadas e gritarias, vomitando indecências e toda sorte de impropérios. Seus frequentadores eram mais fieis, muitas vezes, que as carolas que iam diuturnamente à igrejinha de São Jorge no centro da vila. Aquele dia em específico a Taverna estava relativamente calma. Manguinha Tombador de Carroça discutia com Amauri Bom de Briga quem tinha o dedão do meio mais cumprido, enquanto João Leonidas viajada em suas fantasias cavaleirescas afirmando ser enviado do Sol para salvar Diamantes da opressão da bruxa da Lua. Num instante súbito todos se calaram como se pressentissem uma presença estranha chegando ao local. Passos foram ouvidos vindo da rua e momentos depois as portas de vaivém rangeram abrindo passagem para uma figura taciturna trajado com uma longa capa verde musgo e botas sete léguas pretas. Nas costas trazia um alaude adornado com entalhes florais e cordas douradas. Uma penumbra caiu sobre a Taverna do Zé Carlos que fez todos sentirem calafrios. Não havia uma mosca sequer que não houvesse parado seu zumbido para assistir a sinistra entrada do homem ao local.
Colocando seu Alaúde sobre uma das cadeiras, ele se sentou colocando os pés sobre a mesa mais afastada e reclusa. Pediu uma dose de cachaça e uma porção de torresmos. Sua face estava quase que completamente encoberta pelo capuz, mas a julgar pela barba com fios brancos o homem misterioso devia contar uns quarenta anos de idade. Ele ficou ali, por uma meia hora comendo e bebendo enquanto todos o observavam. Amauri se aproximou timidamente do homem com seu jeito todos destrambelhado e com a voz embargada de cerveja balbuciou:
— Vo...vo... você é o tal Bardo Golias?
O encapuzado soltou um arroto digno do rugido de um leão que fez todos tremerem de medo:
— Ele mesmo. Respondeu o Golias removendo o capuz.
Sua pele era negra, com um brilho bronzeado, tinha um pircing de argola sobre a sobracelha esquerda e uma tatuagem em formato de serpente no pescoço, era corpulento, mas não ao ponte de ser gordo, forte seria a palavra mais adequada. Sua aparência inspirava medo e reverência. João Leonidas saiu aos tropeços esbarrando em mesas e cadeiras ao encontro do bardo, e como uma criança eufórica pediu para ele contar-lhe uma de suas histórias. Golias ficou um tempo pensativo até que respondeu que só o faria depois de mais uma dose de cachaça. De graça. Após ser servido por Zé Carlos, ele sacou seu Alaúde e começou a dedilhá-lo.
— Há muito tempo atrás, nas longínquas terras de Diamantes...
***
Era um dia chuvoso. O chão estava um verdadeiro atoleiro. Aos pés do Monte Litânio tropas do Cavaleiro Azul se encontravam frente a frente com os homens do Cavaleiro Verde. Quem poderia pensar que os dois varões estariam em lados opostos numa disputa? Quando ainda eram apenas adolescentes, brincando de lutas e cavalaria, quem os via diria serem amigos inseparáveis. Ailan que mais tarde se tornaria o Cavaleiro Verde, era um jovem magro e alto, mas muito ágil e astuto. Já William era baixo e parrudo, muito comunicativo e de grande criatividade. Os dois eram como unha e carne. Eles se complementavam em suas diferenças. Certa vez e inventaram de roubar uma galinha de um fazendeiro de Diamantes. Enquanto William pegou o fazendeiro na conversa na porta de casa, Ailan foi sorrateiramente até o galinheiro e sequestrou uma poedeira. Quando o sujeito foi dar falta do bicho, eles já tinham colhido uma dúzia de ovos. Mas é como dizem, o tempo é uma força avassaladora, e nada nem ninguém permanece igual ante a sua passagem. Apesar de sua amizade infantil estavam ambos ali, com suas armaduras e bandeiras, montados em seus corcéis, nutrindo um pelo outro nada além de desprezo:
— Por que matou meus operários? — Perguntou o Cavaleiro Azul.— Tínhamos um acordo. — Respondeu o Cavaleiro Verde — A Estrada do Desvio só seria utilizada durante o período das cheias. Sabe o quanto o uso dessa passagem em minhas terras é prejudicial para os meus negócios.
Diamantes era uma ilha entre montanhas, para chegar ao local ou se passava pela ponte do Rio dos Cágados ou pelas terras do Cavaleiro Verde. No período das cheias as águas sobrepunham-se à ponte fechando o acesso pelo local. Um acordo feito entre ambos os cavaleiros dava passagem à população pelas terras do Cavaleiro Verde nesse período, mas o Cavaleiro Azul queria que a Estrada do Desvio se mantivesse aberta permanentemente.
— O bem-estar do povo não pode estar acima do bem-estar de um só homem. — Rebateu o Cavaleiro Azul.
— Desde quando você se preocupa com alguém além de si mesmo, William? — Respondeu o Cavaleiro Verde elevando o tom de voz.
William temia um enfrentamento direto com seu adversário, estava em menor número e uma justa poderia trazer sérios danos para sua integridade física, dado que ambos os cavaleiros tinham um potencial semelhante em batalha. Mas toda aquela cena não passava de um blefe, uma demonstração de força. Dias antes, o Governador da Província havia recebido um mensageiro da Torre de Diamantes, pedindo que parte das terras do Cavaleiro Verde fossem desapropriadas para construção permanente da Estrada do Desvio. A resposta veio a cavalo. Fazendo sinal para um de seus homens, o Cavaleiro Azul, pediu-lhe para que retirasse lesse o documento em sua algibeira, no qual o Governador dava ordens ao fidalgo para que cedesse as terras sob o risco de perder seu título de Cavaleiro. Ailan ficou sem chão. Não esperava que William pudesse ser tão baixo. Os Cavaleiros tinham um código de honra pelo qual zelavam religiosamente e segundo ele, querelas e disputam entre dois cavaleiros deveriam ser resolvidos num embate de honra, ou seja, numa luta. Mas aquilo era uma verdadeira depravação. Um sacrilégio, William havia perdido completamente os escrúpulos. O primeiro impulso de Ailan foi de avançar contra seu inimigo com cavalos e lanças, mas sabia que perderia a razão procedendo assim. A oportunidade de se vingar viria em breve. Ele já estava arquitetando planos grandiosos para desbancar o Cavaleiro Azul que já não contava com muita popularidade por parte do povo. Uma guerra estava sendo orquestrada, um grande embate, que ficaria lembrado pela história como a Guerra dos Quatro Anos.
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Os Cavaleiros da Torre de Diamantes
FantasyUma Novela Pincaresca de Cavalaria, baseada em fatos reais da vida política em Mar de Espanha.