O Cavaleiro Mascarado

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Quando Golias dedilhou a última corda de seu alaúde, foi aclamado com uma calorosa salva de palmas. Àquela altura a Taverna do Zé Carlos já contava com a presença de pessoas que não tinham o costume de entrar ali. Uma jovem trajada com roupas masculinas e cabelos curtos se aproximou do bardo e pediu-lhe que contasse a história da "Estrela do Monte Minerva". Todos a olharam com certo espanto. Essa era uma das histórias sobre "A Lenda", o chamado Cavaleiro Vermelho de Diamantes. Falar sobre ele era algo digno de menestréis em salões reais, e não de um bardo qualquer numa Taverna copo supo com a de Zé Carlos. As pessoas ali achavam que Golias ia se negar a tão ousada façanha. A menina inclusive lançou sobre sua mesa um saco com moedas de prata, para pagar o pecúlio do bardo, mas ele se recursou a aceitar:

— Isso é um disparate! — falou a jovem — Cavaleiro Vermelho é um herói do povo, suas histórias tem que ser cantadas pelo povo, para o povo e com o povo. Maldito seja quem fez de seu nome um tabu!

— Que linguagem polida minha, cara! — Exclamou Golias.

— Sim, é polida, eu sou filha de Riana e Roberto, fui criada à mesa do Clube do Chá das Revoltadas, tive a melhor educação política que um aldeão dessa vila poderia ter. E eu repito, maldito seja quem transformou o nome do Cavaleiro Vermelho num tabu!

Dedilhando novamente seu alaúde, Golias começou a cantarolar:

— Não te ires, jovem donzela de senhorio.  Não rejeito seu pecúlio, rejeito a paga. Assim como tu, não nego a falar da lenda para o povo. O que recebi de graça, eu devolvo de graça. Então se assente, pois era dia de primavera quando o jovem ferreiro...

***

O Jovem Ferreiro, como o próprio nome sugere, era um jovem ferreiro, nascido e criado em Diamantes, filho de Zezim Ferreiro e de Gil Mala, aquela que fugiu para África com um negão da Tunísia. De palavras profundas e ações gentis, era bem quisto por uns e vexado por outros. Não estava tão fora dos padrões de beleza ou de comportamento, mas também não era um Reinaldo Gianechini, o filho da Dona Gema, que morava na rua do Zé do Dão, e era o terror das novinhas de Diamantes. No dia de seu nascimento não houve nada de especial: nenhuma flor de lótus brotou do chão, nada de reis magos, ou mesmo serpentes foram colocadas em seu berço. A única coisa relatável naquele dia, é que enquanto o povo de Diamantes comemorava a ascensão ao trono do Cavaleiro Azul, Gil Mala estava em dores de parto pelo nascimento de seu suposto primogênito, isso porque havia boatos de que ela tinha um outro filho com o padeiro da vila, mas isso eram apenas boatos. O Jovem Ferreiro nasceu forte e robusto como um leitão. Aprendeu a falar cedo, e de mal engatinhando já sabia andar. Bem, o importante é que aos dezessete anos ele desafiou seu pai, pois desde a tenra infância era fissurado pelas corridas do Speed-Jegue, um evento realizado na primavera onde os aldeões de Diamantes montados em jegues, jumentos e mulas saiam em disparada da Igreja de São Jorge até o cume do Monte Minerva. Zezim Ferreiro, todavia, era terminantemente contra que o jovem participasse da corrida:

— Mas pai, se você participava do Speed-Jegue, por que eu não posso?

— Justamente, aquilo é uma insanidade. Quase matei Mula Cará, e me matei participando desse porcaria. Jurei que nunca mais participaria disso!

— Mas pai, a jura é sua não minha! — exclamou o jovem ferreiro em polvorosa. 

"Taff". Zezim deu uma martelada com toda força na mesa da bigorna, gritando "basta" com o filho. A forja onde trabalhavam ficava na baixada da vila, um estabelecimento não muito apertado, mas com espaço suficiente para guardar toda sorte de peça e ferramenta fabricada ali desde os tempos em que Vó Matriarca, mãe de Zezim, ainda botava a mão no ferro. As paredes eram feitas de pedra e o teto alto de madeira para circular o ar e suportar o calor do forno da forja. Bem ao lado, rente parede com parede, ficava sua casa e um pequeno estábulo onde eram guardadas Mula Cará e um cavalo chamado Pangaré. Pai e filho viviam ali sozinhos desde que Gil Mala foi para você sabe onde com você sabe quem. O Jovem Ferreiro saiu dali pisando duro e foi até um pé de castanheira no final da rua onde costumava ficar trepado quando criança. Perdido em pensamentos e afetos contraditórios, tentava em meio a balbúrdia de sua mente encontrar uma solução para seu dilema. Quando já era o cair da tarde e o céu se vestia de tons alaranjados, ele teve uma ideia relativamente astuta.

 Na manhã do dia seguinte a multidão se aglomerou na praça em frente a Igreja de São Jorge no centro da vila, bandeirolas se estendiam entre as casas e flores repousavam faceiramente sobre suas janelas servindo de pesos para longos lençóis bordados sob elas que balançavam ao sabor do vendo. Tudo era cor e alegria. Os corredores do Speed-Jegue já tomavam seus lugares para a corrida enquanto Frei Wilson benzia os animais com água benta. Em meio a turba, Zezim ferreiro encontrou-se com sua mãe, que estava acompanhada da neta Riana:

— Sua bênção, minha mãe. — falou ele.

— Deus te abençoe, meu filho. Onde está seu menino?

— Deve ter ido para casa de algum amigo da escola, não o vejo desde ontem a tarde.

— Vocês brigaram de novo? — questionou Vó Matriarca dando-lhe um tapinha no braço.

— Não, mamãe. Apenas tivemos uma discussão.

— Aham, sei. Vocês vivem discutindo. O que foi dessa vez?

Antes que Zezim pudesse responder, os sinos da Igreja tocaram para que os corredores ficassem apostos. Alguns homens afastavam as pessoas da frente dos jegues para liberar o caminha para a largada. Uma confusão começou a ocorrer próximo da venda de seu Expedito: um corredor encapuzado montado num jegue avançava sobre as pessoas para tomar seu lugar junto aos demais. Após ser xingado e cuspido por onde passava, ele chegou até onde estava padre Wilson e pediu a bênção para o Jegue tomando seu lugar. Zezim tentou identificar quem era aquele rapaz que lhe parecia muito familiar. 

— Todos prontos? — perguntou Frei Wilson.

Os cavaleiros acenaram a cabeça dizendo que sim. Um dos árbitros da corrida acendeu o pavio de um rojão e apontou para o alto. O explosivo zuniu para longe indo cair dentro da casa de uma velha chamada Matilda, que deu um grito de susto quanto o rojão estourou. Os cavaleiros desorientados não sabiam se riam da velha praguejando contra o árbitro ou se riam do árbitro pedindo desculpa para a velha. No meio dessa confusão, o capuz do rapaz que chegou por último se desprendeu e seu rosto foi revelado. Zezim ao ver que se tratava de seu filho deu um grito chamando-o de volta para a plateia. Frei Wilson deu um palmada na anca de uma das mulas gritando "Já, já, já!", a leva de cavaleiros saiu em disparada em direção ao monte Minerva, incluindo o Jovem Ferreiro que deixou seu pai comendo poeira na porta da Igreja de São Jorge.

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