Um temporal caía forte do lado de fora. Da janela Carlos podia observar o tempo fechado, cheio de nuvens escuras completamente carregadas, que davam um aspecto noturno àquele meio de tarde. Trovejava alto e o vento carregava a chuva num ângulo torto, urrando alto como se fosse a voz de Deus bradando em fúria contra os pecadores.
Carlos nunca foi um cara corajoso. Tempos assim lhe faziam lembrar-se da infância, quando tinha pavor de tempestades. Na escola, um amiguinho crente fazia sempre questão de contar para ele e os colegas como Deus, desiludido com os rumos da humanidade, causou um dilúvio, lavando o mundo daqueles que considerava maus.
Na cabeça dele, o Senhor se enfureceu novamente com a humanidade; não perdia a oportunidade de, quando chovia, dizer aos colegas de sala que ele novamente pretendia inundar o mundo.
Era tudo uma grande bobeira de criança: uma fantasia infantil e ingênua, misturada ao fervor religioso com o qual fora criado. Mas foi o suficiente para assustar Carlos e outros mais medrosos.
Carlos se lembrava do quanto aquilo o apavorava. Lembrava de como se escondia de medo dos trovões, rezando dezenas de "Pai nosso" e implorando ao Senhor que não os afogassem.
Foi só quando seu avô notou as atitudes estranhas, que tratou de acalmar o garoto. "Deixa de ser bobo, moleque! Deus não desperdiça mais água com gente como nós.", dizia ele, com uma breve explicação cristã do porquê.
Isso aliviou um pouco o coração de Carlos. Mas o medo, claro, não se fora de imediato. Levou algum tempo, e algumas garantias do avô de que tudo ficaria bem, para que ele se acalmasse. Mas foi com os estudos que seus receios foram sanados: na escola com as aulas de geografia, onde aprendeu sobre os ciclos das chuvas, e mais tarde na faculdade de meteorologia, onde aprendeu a monitorar o clima, que percebeu o quão irreal e ilógico era a possibilidade de uma inundação nessa escala.
Hoje, adulto e ateu, se preocupava com questões mais reais. Quanto a chuva que observava naquele momento, tinha receio de que o lixo acumulado pela falta de coleta, somado aos vizinhos que pareciam não saber o que era uma lixeira, tivessem entupido os bueiros, podendo causar um alagamento na rua, que já tinha histórico disso. Por essas razões tinha medo que as águas invadissem as casas. Pois sabia que não era necessário que um deus destruísse a humanidade, ela própria era capaz disso.
Visto que estava tudo bem até o momento, fechou a janela e a cortina; o som da chuva baixou consideravelmente e ele pôde ouvir o som da TV. Ligada na parede oposta à cama, a tela que brilhava exibia o jornal RJ na cara , no qual um repórter dava detalhes sobre uma série de roubos a residências, enquanto o apresentador dava toda a sua atuação em demonstrar uma revolta que ele não sentia, mas que chamava audiência.
Quando os detalhes e o discurso foram ficando mais intensos, Carlos se aborreceu e desligou a TV. Já tinha preocupações o suficiente.
Sentou-se na cama e puxou as cobertas por sobre as pernas, tirou sua atual leitura de cima do criado-mudo e pôs-se a ler sobre a luz do abajur. Era a forma mais agradável e confortável de se passar por um tempo como aquele.
Mas como todo castigo pra corno é pouco (e ele era), os problemas começaram a aparecer.
Estava imerso em seu livro, quando de repente a luz do abajur se apagou. Achou que a lâmpada tinha queimado, mas olhou em volta e percebeu que nenhum eletrônico emitia luz por nenhum LED ou tela.
Bufou e guardou o livro. Teria que descer e ir até o quintal (na chuva) para verificar o quadro de força ver o que houve. Saiu do quarto cautelosamente para não tropeçar ou bater nalgum móvel, e adentrou o corredor sombrio e silencioso, cujo único barulho era o som abafado da chuva e dos trovões do lado de fora.
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Medos reais
Mystery / ThrillerUm homem observa a tempestada de sua janela. O temporal desperta memórias de horrores do passado, enquanto medos novos se aproximam despercebidos.