Decisões.

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São Paulo - 20/01.

Talvez viver fosse cansativo. Não cansativo do tipo "meu Deus, eu quero morrer", mas sim de chegar do trabalho e só querer deitar na cama para não acordar nunca mais. Tá, eu exagero um pouco, porém isso só tá acontecendo porquê não aguento mais essa reunião chata, com essa gente chata e esse cara engomadinho que sou obrigado a chamar de chefe. Quem que marca reunião presencial num sábado de manhã? Vai tomar no cu.
Como se não bastasse, ainda ouço a voz de fumante chamar meu nome, o que me faz revirar os olhos de forma lenta e um pouco dolorosa.

– Tem algo para nos acrescentar, Thalys? Você é um dos que mais vende e tem a capacidade de hipnotizar nossas clientes de uma forma única. Talvez seja esse seu jeitinho.

Ele queria falar que eu sou gay. O "jeitinho" é justamente por isso. Olhei para os meus companheiros de trabalho que soltavam risinhos baixos e logo a cara daquele desgraçado, soltando um riso anasalado por dois buracos grandes e peludos. Engoli em seco e soltei a caneta que estava em minhas mãos. Arrumei fios cacheados que teimavam em cair sobre minha testa e logo dei de ombros.

– Eu acho que não tenho nada pra falar. Agradeço o elogio, é fácil uma mulher cair na sua lábia quando não se é um homem burro ou machista. O segredo é esse. Bem, acho que a reunião acabou, certo? Tenho que voltar para casa. Meu gato está doente.

Sem mais delongas, busquei a mochila que estava ao chão e guardei o notebook. Observei os olhares de reprovação e apenas pisquei, dando um leve tchau.

– Até segunda, pessoal.

Ernesto – meu chefe – ainda tentou falar algo, mas já havia fechado a porta de vidro, apenas o vi balbuciar e provavelmente falar um belo e articulado "viado", mas enfim. A vida não é um morango, ele que tome vergonha na cara e vá fazer algo de útil. Sei lá, trair a trouxa da mulher dele pela milésima vez. Idiota.

[...]

Chegar em casa era a melhor coisa do mundo. Todavia, nem tudo são flores... corri pra cozinha quase desmaiando de fome, eu deveria ter comido algum podrão antes de vir. A preparação ia ser o famoso prato de um jovem adulto que mora sozinho. Macarrão com salsicha.

Ri da minha triste situação naquele momento. Paguei o aluguel e levei a sério o tal "posso passar fome debaixo de um teto". Seria cômico se não fosse super trágico.
Perfeito. O cheiro gostoso de alho, manteiga e macarrão, misturado com uma boa salsicha temperada... hmmm. Você aí que está lendo, se não provou esse manjar, falhou como pobre.

Corri pra sala com o intuito de conseguir assistir alguma coisa que fosse distrair minha mente.
Desculpa, não contei pra vocês o que aconteceu comigo. Relevem, eu tive reunião em um sábado.


ENFIM!

Me chamo Thalys e atualmente trabalho em uma loja de móveis aqui em São Paulo. Eu sai muito cedo de casa por conta do clichê de pais homofóbicos que não aceitam o filho e blá-blá-blá! Enfim, comecei a me virar e aí surgiu esse trampo e aos poucos fui fazendo minha vida voltar aos eixos. Uns meses atrás eu fiz uma inscrição para ganhar uma bolsa em uma das melhores escolas de artes do mundo, que fica em Londres. Contava com um intercâmbio que me faria conhecer muito do mundo da moda – que é minha paixão – fiz a prova totalmente descrente que iria passar, afinal, o tanto de gente que deve ter feito. Dei o meu melhor e coloquei todos os meus conhecimentos naquela maldita prova que me tirou meses de sono. Hoje é para sair o resultado da bendita, o que me deixou ansioso desde a noite anterior. Difícil, difícil demais. Eu acho que o pior mesmo é passar essa ansiedade sozinho. Sem poder compartilhar com ninguém... amigos? Ah, eu tinha dois, mas se afastaram. Um porque começou a namorar e o outro por ser um babaca. Colegas de trabalho? Ah pelo amor, nem você gosta dos seus.

A verdade é que eu me dediquei seis meses inteiros para essa prova. Chegava do trabalho e ia direto para o computador e estudava, estudava, estudava. Minha vida era somente essa. Nossa... então faz oito meses que eu não tran... meu Deus!

Mas, voltando ao assunto, esse dia seria o dia em que eu saberia se era inteligente o bastante para passar em uma prova e largar tudo pra mudar de país, ou era burro demais e estaria fadado a trabalhar em uma empresa chata, com gente chata e aquele diabo de chefe. Não, eu isso não pode ser meu futuro. Me r e c u s o!

Era engraçada a situação, pois ei fazia exatamente movimentos repetitivos: olhava a TV, comia um pouco e observava o e-mail. Isso até acabar o macarrão e minha barriga denunciar que queria mais. Ela era uma segunda parte pensante do meu corpo.

Corri para a cozinha e quase voei com prato e tudo, culpa da meia lisa que comprei por cinco reais no brás. Céus. Estava tão agoniado que já soava frio.

Plim!

Aquele pequeno barulho de notificação fez minha espinha gelar. Eu tinha colocado somente para o e-mail. Engoli em seco e deixei o prato em cima do balcão, ignorando minha barriga reclamar por meio de alguns barulhos estranhos. Peguei o celular que não durou dois minutos na minha mão, antes de cair novamente sobre o sofá.

– Passei... eu pa.... caralho? CARALHO!?

As lágrimas não tardaram a cair em demasia dos meus olhos. Comecei a pular de alegria e esqueci da porra das meias. Resultado? Escorreguei e quase quebro uma costela. Seria eu a nova Paula Fernandes?

Limpei sem sucesso as lágrimas e do chão mesmo peguei o celular. Ali dizia que eu teria que comparecer na prefeitura e depois ao fórum. Burocracias. Respondi que estaria fazendo o que foi pedido e logo corri para o quarto.

Iria fazer as malas.

Naquele momento eu havia esquecido de tudo. De toda a tristeza que passei durante os anos que morei com meus pais, da minha expulsão, do meu chefe filha da puta... por falar nele.

– Ernesto? Está me ouvindo? Então, eu me demito. Eu me demito entendeu? Vai tomar no cu sua empresa, você, sua mulher corna e toda essa corja. VÃO TOMAR NO CU!

Gargalhei alto e logo desliguei o telefone, correndo para arrumar tudo.
Vocês devem se perguntar "ué? Ele vai assim do nada? Sem preparo". Não né, para de ser besta. Eu já tirei o visto e  tenho uma grana guardada desde o ano passado. Eu já queria isso, era meu sonho. Já estava me preparando sem nem saber se iria ou não passar. Estava tudo certinho, tudo pronto só esperando o universo acatar meus choros noturnos. E acatou... com alguns xingamentos e ameaças, mas acatou.

Corri e vesti a primeira roupa que vi para resolver a papelada. A tarde seria longa. Teria que deixar tudo pronto. Afinal, a viagem seria na segunda. Suspirei e sorri totalmente abobalhado. Não estava tãooo surpreso, afinal, aquilo era fruto do meu estudo incansável, medo? Sim, mas esperava o melhor. Eu consegui. Eu passei simplesmente na Universidade das artes de Londres.... eu era a porra de universitário da Central Saint Martins. EU VOU FAZER MODA!

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⏰ Última atualização: Oct 21, 2024 ⏰

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