A CASA AMARELA

3 0 0
                                    


Ao longo dos meus sessenta anos, acumulei lembranças, as quais seleciono por: memórias limpas (as que me trazem somente boas sensações) e memórias turvas (as que me trazem algum tipo de incômodo). Mas há uma memória, o princípio de tudo, que denota meus dias mais felizes, os quais nunca mais voltarão, que ficaram presos em uma casa amarela, localizada em uma pequena rua, na cidade em que nasci. Essa casa amarela, guarda em cada tijolo, em cada cômodo, sensações, lembranças vívidas de tempos coloridos e alegres. Foi nela que aprendi a andar. Foi nela que ganhei minha primeira marca no joelho, devido uma queda, enquanto corria atrás de meu irmão. Foi nela que descobri que Papai Noel não existia, quando vi meus pais guardarem os presentes de Natal, no armário do quarto deles. Foi nela também, que aprendi a ler, a gostar do banho de chuva, a observar as estrelas, pela janela que dava para o quintal. E nessa casa, aprendi o significado de acalanto.

Nasci em uma cidade chamada Crateús, no interior do Ceará. Papai era "um homem com posses", conhecido em toda a cidade, por sua simpatia, bondade e generosidade. Ele adorava fazer grandes festas e chamar toda a criançada da cidade, para participar da animação, comer e ganhar alguns brinquedos. Isso acontecia todo ano, durante o período das férias ou dia das crianças. Mamãe era só orgulho dele. Sempre falava o quanto meu pai era justo, honesto e que devíamos nos orgulhar muito dele. Fui o segundo filho desse nobre casa. Nasci em mil novecentos e sessenta e três, em uma manhã de abril. Mamãe disse que nasci em casa mesmo, já que era costume na família. Ela também diz que nunca vira criança mais quietinha, cabeluda e grandona (nasci com seis quilos e cinquenta e cinco centímetros). Fui notícia em toda a cidade, como o bebê gigante dos Alencar, sobrenome da minha família.

Antes de mim, mamãe havia dado à luz a um outro menino, chamado Pedro, meu irmão mais velho. A diferença entre nós era de apenas um ano e, por isso, éramos extremamente ligados um ao outro. Eu consegui sentir quando Pedro precisava de mim ou estava chorando. Papai dizia que parecíamos gêmeos. Ele nos chamava de "irmãos grude". Sempre riamos muito disso. Havia ainda minha irmã, que nascera depois de mim, Julieta. Herdara o nome de minha avó materna, uma senhora de largo sorriso e olhos azuis bem brilhantes, que costumava levar doces para nós, todas as vezes que nos visitava. Julieta, minha irmã, era uma menina linda, mas que não conseguia ficar quieta. Ela estava sempre aprontando algo e, em muitas dessas vezes, meu irmão e eu também participávamos, pois achávamos as ideias de Julieta, em sua maioria, sempre sensacionais. Teve uma vez que ela pegou a toalha da mesa da sala e levou ao quintal. Cobriu o pé de cajueiro e disse que ali era uma cabana que nos levaria a qualquer lugar do mundo. Passamos o resto do dia viajando.

A casa em que morávamos, era plana, espaçosa e muito arejada. Com seus cinco quartos, uma cozinha ampla, duas salas que podíamos correr livremente e um quintal enorme, com mutas árvores e alguns bichos que criávamos. Era naquela casa que toda a magia acontecia. Foi ali que aprendemos os primeiros passos da vida, sobre como funcionavam as coisas, as pessoas e o mundo. Os almoços de domingo, regados a muito barulho das vozes dos meus parentes, sempre conversando sobre as notícias da semana, sobre a vida de algum parente ou sobre o dia a dia, dava a sensação de que aquele tempo nunca iria acabar. A gente fazia pequenas apresentações para família, como teatrinhos de bonecos, danças ou até mesmo umas novelinhas que minha irmã e primas adoravam e nos colocavam em diversos papéis. Era tanta diversão que o domingo parecia durar uma eternidade. No fim da tarde, todo mundo ia pra sua casa, já aguardando a diversão da próxima semana.

Quando fiz dez anos, papai decidiu que precisávamos trocar de escola, estudar em um município vizinho, em uma escola enorme, que era tipo internato. Passávamos o dia todo e, umas dezessete horas da tarde, íamos para casa de um tio nosso, que morava na rua ao lado da escola. Aos fins de semana, voltávamos para casa, sempre na sexta, após o horário das aulas. Eram dias de muita espera e agonia. A gente sentia falta do papai, da mamãe, das brincadeiras no quintal e da casa que guardava todos os nossos segredos. Longe da casa, tudo parecia passar lentamente, como se o relógio desse uma pausa nos ponteiros, para tirar um cochilo. Na nova escola, que era apenas para meninos, meu irmão e eu tentávamos seguir os conselhos que meus pais haviam deixado, de prestar atenção nas aulas, sermos sempre educados, atenciosos e gentis, além de lembrar sempre que eles estavam ali, logo ao lado, há cerca de vinte e cinco quilômetros. Quase nada para eles. Um universo de saudade de nós.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Oct 20 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

A CASA AMARELAWhere stories live. Discover now