ruptura

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quando eu era pequena, visitei um parque japonês durante a primavera. e, caminhando dentro do arco de bromélias, no final das flores, havia uma família de sombras dançando. seus corpos disruptivos se movimentavam enquanto cerejas caíam ao pé da vovó, alargando e encolhendo na escuridão petrificante de suas bocas carnudas. eu me lembro de uma sensação distante, onisciente, de que a realidade se partia em afiadas inconsciências, meus pés como dentes agarrando o solo, vovó correndo na direção contrária. "eles viram uma criança fotográfica sem cores, débil pelo medo da mudança". vovó me contou que fiquei dois meses sem falar depois disso, ainda que eu não me lembre.

agora, ao pé das mesmas árvores de algodão, meu pensamento neva denso e almiscarado. eu me pergunto se eles também sentiram medo ou curiosidade, tentando alcançar uma primavera invencível, e sei que seu modo de dançar, de alguma forma, carregava as ondas para dentro da gengiva, trincando os molares, furiosamente. sempre mordi com força. o sangue na maçã. eles pensam que não sou capaz de colocar meu coração sobre a mesa durante um banquete, dizendo-me sobre coisas das quais não me lembro, incapaz de escapar do limbo de perguntas sobre pessoas que eu fui em um mundo que você nunca existiu, embora eu não tenha te inventado. e quando a dança chega com cheiro de floral branco, o refrão questiona essa verdade desconcertante, minha gengiva febril como a chaleira durante as manhãs de orvalho. "gowon, você é humana? você ao menos é real"? eu os vejo cantando sobre dores e prazeres, tentando tudo o que podem, buscando dentre adjetivos e subjetivos, se há o que realmente pensar. vovó me abençoa ao pé da cama, a bíblia nas mãos e eu sei que devo ter começado a vida pelo fim, "o verdadeiro vislumbre da morte é ter vivido a vida".

escalando escopetas e barrigas férteis, sinto um vislumbre daqueles dias numa voracidade de escapar do refrão que ressona tão alto, com raiva o suficiente para me perguntar se isso era o que você queria, afinal. e nessa fome ancorando os garfos no nervo e o sangue pelos sapatos, o crime contundente da memória visita a beira de trincheiras, porque sou uma sombra cavernosa no meio da anestesia marcada, do medo de nunca saber no meio das quinhentas facetas durante o julgamento.

eu sempre soube que os saltimbancos tinham razão. olhos ociosos visitam os movimentos e tenho certeza que a verdade sobre pessoas como você e eu, a compaixão e o egoísmo, suas mãos dissociam do problema, meus dedos quebram como montanhas derretendo, que a hora chegou e que a incerteza que me cerca é longa entre a primavera e o outono. então abra bem os olhos, passe sobre o arco de flores e pergunte se isso soa familiar de alguma maneira. 

eu não me lembro de nada.


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